Wednesday, 24 March 2010

Um livro a todos os títulos surrealista


Continua a ser notícia o lançamento ainda há pouco de um volumoso livro de memórias assinado por um veterano das lides nacionalistas. Multiplicam-se opiniões, chocam pontos de vista, vindos de pessoas de todos os quadrantes, umas mais exaltadas do que outras, havendo também os mais comedidos e objectivos na opinião que emitem. Realçam, uns, o exagero e as imprecisões do autor. Outros realçam a protagonização exagerada, acabando tudo isso – e outras coisas mais – por suscitar na mente do leitor reticências e dúvidas quanto a factos empolgantes por ele narrados de forma apaixonada.

Na essência, este livro de Sérgio Vieira, também conhecido entre antigos presos políticos como “coronel das beatas”, trata-se de um livro surrealista. Um brilhante causídico, que se evidenciou em Moçambique pela oposição consequente ao salazarismo, regime totalitário alicerçado num partido único e numa polícia política, prefacia em tons reverenciais a resvalar para a lisonja um autor que representa uma dos rostos mais visíveis de um totalitarismo que assentou igualmente num partido único e numa polícia política e cujos traços permeiam ainda a sociedade moçambicana.

O prefaciado, porém, sente-se no direito de condenar o salazarismo, embora lhe seguisse o exemplo. Os comandos das forças repressivas de Salazar eram “meninos de coro” quando comparados com o “coronel das beatas”.

O autor do livro lamenta no seu testemunho as insuficiências do ensino promovido pela Igreja Católica em Moçambique, não obstante o facto de, na fase posterior à independência, ter-lhe cabido o papel de ponta-de-lança da política de perseguição religiosa que não escolheu denominações, ora encerrando missões e estabelecimentos de ensino tutelados por igrejas em todos os cantos do país, ora restringindo a actividade missionária, política essa que incluía campanhas de difamação orquestradas a nível de uma comunicação social subserviente e manietada pelo regime sob ameaças de reeducação em campos que mais não eram do que campos de morte que, comparados, permitem considerar-se o complexo dos campos de concentração de Auschwitz, o maior de todos os estabelecidos pelo regime nazi, hospedarias de luxo.

Critica a monarquia portuguesa por ter perseguido o clero, e a PIDE por ter assassinado o Reverendo Zedequias Manganhela, mas no Moçambique que acabava de sacudir as grilhetas coloniais, usaram-se cordas embebidas em sal para a tortura de fiéis das Testemunhas de Jeová e de outras confissões religiosas, prática que Ricardo Rangel publicamente denunciou como sendo corrente no reduto da morte, vulgo campo de reeducação, de Naisseko, na província onde o prefaciado chegou a assentar arrais e onde entraram e não mais saíram com vida clérigos como Estêvão Paulo Mirasse.

Critica ainda o prefaciado a expulsão dos agricultores no Vale do Limpopo, para dar lugar aos colonos que Salazar enviou para o colonato com o mesmo nome, mas depois da independência o regime que representou fez o mesmo: expulsou camponeses do vale, transformou o colonato em CAIL, papel químico de outras experiências alucinantes nas demais regiões do país, incluindo o megalómano projecto dos 400 000 ha, que se estendia de Cabo Delgado ao tal Niassa; tudo isso em nome da edificação da sociedade nova escorada em reservatórios de mão-de-obra gratuita, eufemisticamente designados de aldeias comunais.

Critica também o prefaciado a desculturalização dos povos das colónias por via do processo de assimilação, mas na memória dos moçambicanos permanece fresca a política do regime de negação das suas tradições seculares, estatutariamente apregoada por ele, por colegas e pelo partido da “grande família” e que se resumia à destruição da sociedade tradicional, à ostracização das línguas nacionais e à repressão de usos e costumes em nome da consolidação da unidade nacional, do “matar da tribo” e de um pretenso combate ao obscurantismo.

Condena o prefaciado a perseguição salazarista movida contra Humberto Delgado e outros oponentes políticos do Incontestável de Santa Comba Dão, e que foram atirados para masmorras, uns, deportados paras as colónias, outros. Mas no processo de transição para a independência, o prefaciado copiou Salazar, indo ainda mais além, organizando a prisão sumária, o rapto ou recorrendo ao ardil para atrair os incautos no âmbito de uma charada jurídica por ele próprio coreografada em Nachingwea, à qual viriam a comparecer perante o Indispensável, num processo humilhante e degradante que culminou no seu internamento em novos tarrafais e aljubes criados nas ditas zonas libertadas, e cujo paradeiro permanece até hoje no segredo dos deuses.

Recorda o prefaciado com fervor as associações estudantis em que militou durante a permanência na capital do Império e que eram perseguidas e incomodadas pela PIDE e mandadas encerrar pelo regime de Salazar. Mas no Moçambique independente, o regime do prefaciado aboliu a Associação Académica de Moçambique (AAM) por não ter conseguido domesticar esta instituição que se notabilizara por uma militância intransigente contra o fascismo e pela instauração de uma ordem democrática num Moçambique livre e soberano.

Recorda também o prefaciado que em 1963, Marcelo Caetano se demitira do cargo de reitor da Universidade de Lisboa por discordar da intervenção da polícia no campus universitário. Mas ao longo das páginas do seu cartapácio (um amigo nosso chegou até a comentar que “se nada tiver para ler, pelo menos peso tem para o autor poder matar mais um”) não se descortina um única referência sequer a membros do governo, do partido ou de qualquer outra instituição tutelada pelo regime da Frelimo que tivesse seguido o exemplo de Marcelo Caetano quando em Março de 1977, Samora Machel anunciou na Beira que “reaccionários haviam desaparecido das escolas” e que depois foram “mandados para campos de reeducação” e submetidos a “trabalhos forçados”, ameaçando os demais com “cavalo-marinho”. Quiçá curta, a memória do prefaciado?

No âmbito da criação da “sociedade nova” livre dos “vestígios-e-vícios-da-sociedade-decadente-colonial-capitalista”, em que se devia emular as “ricas- experiências-das-zonas-libertadas”, o regime do prefaciado mandou prender mulheres casadas, separar mães dos filhos e destruir lares familiares em nome do combate à prostituição ou no âmbito de Operações Produção, mas no anos da Casa do Império o prefaciado relata com orgulho ter frequentado prostíbulos à Rua da Glória e casas de jogo ilícito na Avenida Duque de Ávila, e de ter convivido com coristas do Parque Mayer que depois aviavam no «Maxime» na Praça da Alegria, o que era regado com bons vinhos e na companhia dos capitães da indústria colonial. Anos “difíceis”, esses, os do exílio regalado no coração do império colonial. A mesma hipocrisia da Madame Mao que em plena Revolução Cultural mandava queimar filmes de realizadores ocidentais, mas no interior do seu palácio deliciava-se a ver películas a preto e branco, mandadas vir expressamente de Hollywood.

Subjacente a tudo isso, a versão surrealista dos factos e dos acontecimentos, em que num decalque de outros regimes totalitários, faz-se, diz-se e actua-se sempre em nome do povo, cuja legitimidade alcançaram através do cano das espingardas. O salazarismo cozinhava resultados eleitorais, em que as listas da “grande família” (a União Nacional/ANP não se considerava partido...) arrecadavam sempre maioria absoluta, tal como hoje acontece no meio da trafulhice organizada por uma formação política que, numa parecença indesmentível com a UN/ANP, se afirma como “partido de todos os moçambicanos”, isto é, da “grande família do Rovuma ao Maputo”, que insistem em arregimentar sob a batuta da “unidade de pensamento”.

Presente nas páginas, não o acto de contrição há muito esperado como prelúdio de uma verdadeira reconciliação nacional, mas antes o rancor e a arrogância de uma elite que se considera escolhida e eleita; autoproclamada de “melhores filhos do povo”. Como caricatura de autocrítica, o autor reconhece de forma ténue o fiasco das operações de “escangalhamento”, e mais não diz. Em jeito de reparação, defende que as filhas e os irmãos e o pai da «reaccionária»– um cartão de funcionária da PIDE convenientemente encontrado há mais de meio século, mas surpreendentemente nunca mencionado aquando da “paródia de Nach” – estão ainda vivos; ou que os filhos do reverendo assassinado estudaram por que o regime quis. Faltando dizer: Vendo bem as coisas, não somos assim tão maus como nos pinta a escória e arraia-miúda. Que hipocrisia surrealista!


Editorial do CANAL DE MOÇAMBIQUE – 24.03.2010, citado no Moçambique para todos.

No comments: