A dificuldade de tornar perene a história oficial moçambicana, nos moldes desejados por homens como Sérgio Vieira, será sempre maior enquanto persistir a tendência para privilegiar a mentira e o escamoteamento dos factos. Em nada ganha o país com falsidades, e muito menos a manifesta arrogância dos que hoje podem mentir oficialmente é uma garantia da sua dignificação no futuro. O castelo tende a ruir!
Ajuizar em torno das cerca de 750 páginas do testemunho de Vieira é um empreendimento difícil e muito aborrecido. É como se estivéssemos a ler Sérgio Vieira pela milésima vez. Na verdade, com a excepção de um e outro dado novo, o livro é, na prática, uma compilação de vários textos que foram sendo publicados por Vieira ao longo de muitos anos. Trata-se de textos “cartas a muitos amigos” e “Testemunhos de Memória” que podem ser encontrados em jornais, revistas e boletins informativos do Partido Frelimo. Dado que cada um desses textos versa sobre um tema díspar do outro, nota-se uma enorme dificuldade do autor de encadeá-los no livro de acordo com o que pretendia narrar em cada capítulo. Assim, o leitor tem que se munir não só de uma “paciência de chinês”, como também de um prévio conhecimento de alguma história universal, pois, para colmatar a incapacidade de encadeamento dos factos por narrar, o autor vai misturando de capítulo em capítulo os assuntos com os seus “doutos” conhecimentos da história do mundo, e outras histórias ocultas da sua lavra, tornando, para os leigos, a leitura muito aborrecida.
A forma como no livro Sérgio Vieira lida com a vida e a memória de muitos seres humanos e a leviandade com que brinca com a inteligência dos moçambicanos fazem da mentira a sua marca principal. Aliás, o prefaciador do “além-mar”, sr. António de Almeida Santos (que tudo fez para escrever outro livro por cima do livro de Vieira), também dúvida da honestidade do autor do “Participei, por isso testemunho”, pois, só se uma memória de elefante fosse Vieira seria capaz de prescindir de documentos escritos para se recordar com precisão de nomes, momentos e circunstancias vividas há longos anos!... (p.24). E não deixa de espantar que depois de passar por um crivo de muitas mãos “antes de ser produto final” (como o escreve Lourenço Jossias) o livro saía a rua com dados susceptíveis de ridicularizar todo um acervo de personalidades que se julgava atentos e idóneos, que tiveram o privilégio de ler os manuscritos com antecedência. E de chacotas não pode escapar o partido-mãe que deu origem a tudo isto.
O que caracteriza o livro, na essência, resume-se a um derradeiro esforço do autor de justificar e preservar os pilares duma história oficial que tende a ser fortemente sacudida pela aparição, no país (e fora), de outros estudos, quiçá, mais convincentes. Sérgio Vieira não trás novidades. Continua, de forma cada vez mais pobre, a tentar vender à homens do séc. XXI uma imagem mitológica de si mesmo (como homem de fé politico) que nem sequer tem a haver com o homem histórico que ele e seus companheiros foram de facto. A base de sustentação do livro é, fundamentalmente, a mesma de sempre: mentiras e acusações gratuitas, todas fundadas numa atitude condenável e num prazer malévolo (que a alma de Vieira detém) de espezinhar, insultar e denegrir quem não se pode mais defender, sobretudo Uria Simango, Joana Simeão, Lázaro Nkavandame e outros. Sempre que Vieira se vê confrontado com factos prefere “assobiar” de lado do que enfrentar, com coragem, o adversário. Exemplifica-o a história que Vieira conta sobre Artur Janeiro da Fonseca (pp.137,138) que, a seguir, transcrevemos na íntegra:
“(…).
O ano de 1961 iniciou-se com o sequestro do paquete Santa Maria, por um comando de antifascistas portugueses e espanhóis opositores de Salazar e de Franco, sob a direcção do capitão Henrique Galvão. O paquete, durante a ocupação pelo comando mudou o nome para Santa Liberdade. No Brasil de Jânio Quadros populares e forças políticas acolheram calorosamente Galvão e os seus companheiros no porto de Recife.
Curiosamente, a PIDE escolheu um seu informador, grumete ou moço de limpeza a bordo, oriundo da Beira, Artur Janeiro da Fonseca, para içar o pavilhão português no barco, quando o governo retomou o seu controlo. À chegada a Lisboa, Salazar abraçou-o. Este Artur Janeiro da Fonseca fingiu fugir de Portugal para Marrocos em 1963. Foi recebido na CONCP e contou várias histórias bem mal contadas a camarada Maya da Fonseca do PAIGC, casada com o Africano Neto de Angola. A Maya fazia parte do secretariado da CONCP, instalado no nº 6 da Rua Paul Tirard em Rabat. Como ele mencionara os nomes de Amílcar Cabral e o meu, informado da situação, o camarada Amílcar Cabral, que nesses dias se encontrava em Rabat, decidiu ouvi-lo na minha presença, sem revelar as nossas identidades. Contou de novo, as diversas historietas e mencionou os nomes de várias pessoas para corroborar o que narrava. Voltou a citar os nossos nomes, ignorando com quem estava a falar. No final da conversa o camarada Amílcar apresentou-se e apresentou-me, imagine-se a cara com que ficou o senhor! Dois anos depois seguiu, com uma bolsa da UGEAN, para a RDA onde fornecia informação sobre os estudantes aos serviços e, posteriormente, instalou-se na RFA onde veio a representar a RENAMO, parece que até hoje está ligado a essa organização”.
Ora, no mínimo, é preciso ser aquilo que os brasileiros chamam de “cara de pau” para escrever o que acima se cita, pois, uma vez descoberto a tempo que Fonseca havia fingido fugir de Portugal para Marrocos (ao serviço da PIDE), não deixa de ser estranho que Sérgio Vieira e o seu camarada Amílcar Cabral não tenham alertado outros “camaradas” sobre as verdadeiras intenções de Fonseca a ponto de dois anos depois Fonseca vir a beneficiar duma bolsa de estudos da UGEAN (União Geral dos Estudantes da África Negra sob Domínio Colonial Português) para a Alemanha do Leste onde, segundo escreve Vieira, Fonseca passou a fornecer a PIDE informações sobre os estudantes. A menos que a UGEAN tenha sido uma instituição patrocinada pela própria PIDE, embora se saiba, na verdade, que surgiu na esteira da CONCP e, um nacionalista angolano, Desidério da Graça presidia-a como bem o escreve Vieira!...(p.166).
A acusação que Vieira faz a Fonseca não é nova. Já havia sido, na verdade, publicada no Boletim Informativo do Partido FRELIMO em Setembro de 2005 sob o título “Testemunhos de Memória”. Embora do exílio forçado tenha demorado a tomar conhecimento da acusação, assim que teve acesso ao artigo, através do blog Moçambique para Todos, xiconhoca, Fonseca tratou de desmenti-lo trazendo-nos a luz um outro Sérgio Vieira (o da história politica vivida, e não o da mitologia e fé politica imposta) nos seguintes termos:
“(...) Depois de muito matutar, assim espero que seja e, por isso, me senti com a responsabilidade moral de vir ajudar o General Catedrático, esta verdadeira “biblioteca viva” ambulante, “corrigindo, acrescentando”, afastando alguma “inverdade” indeliberada ou sem intuito, assim o espero também, porque não quero, aqui, arquitectar processos de intenções, só desejo lembrar factos.
Queria só cingir-me à minha “parte limitada do todo”, até, porque uma velha camaradagem me liga ao General Catedrático. Camaradagem que nasceu, no verão de 1963, quando, aos 18 anos de idade, desembarquei do cargueiro “África Ocidental” da CUF, em Casablanca, para pedir asilo político às autoridades marroquinas e que me ajudassem a contactar a CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas).
Foi no foyer de Rabat, como então designávamos a pensão, que a CONCP mantinha naquela cidade, que encontrei o grumete Sérgio Vieira, que nunca tinha cruzado nos meios nacionalistas de Lisboa, que eu frequentava, nomeadamente o Clube Marítimo Africano, talvez, porque ele frequentava outros, na Juventude Universitária Católica Portuguesa. Ali convivemos com moçambicanos, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, durante um ano, até ao dia, em que eu recebi ordens do mais velho Marcelino dos Santos para ir para Argel, onde já estava o irmão João Munguambe, como delegado da FRELIMO, naquele país, deixando, para trás, o grumete Sérgio Vieira muito triste, em Rabat, ainda não era general catedrático e estava bastante longe disso.
Quantas vezes, em Rabat, eu intervim em defesa de Sérgio Vieira, quando o encontrava a chorar, no foyer, porque os Angolanos lhe tinham batido, ao ouvir os seus comentários e teorias políticas originais, que eles consideravam insultuosos para Angola. Quantas vezes expliquei aos camaradas angolanos, que bater no rapaz não era solução, nem maneira de o reeducar. Quantas vezes aconselhei Sérgio Vieira, deprimido e abafado, na sua triste condição de grumete da CONCP a não tirar conclusões apressadas sobre a incapacidade política do Presidente Eduardo Mondlane e outros dirigentes da FRELIMO, para conduzir a revolução moçambicana.
Quando desembarquei, as autoridades marroquinas recusaram entregar-me ao comandante do navio “África Ocidental”, porque eu era Africano e tinha o direito de ficar em África e transmitiram o meu pedido à CONCP. Fui depois mandado, sozinho de comboio, de Casablanca para Rabat, à Sede desta organização, onde o engenheiro Amílcar Cabral, João Munguambe e Miguel Trovoada me entrevistaram, antes de confirmarem às autoridades marroquinas, que eu ficava com a CONCP. O mais velho Marcelino dos Santos, Secretário-geral da CONCP estava ausente e só vim a conhecê-lo semanas depois. Antes do regresso de Marcelino dos Santos, também, voltei a abraçar José Frete, que conhecia do Clube Marítimo Africano e era então secretário-geral da UGEAN (União Geral dos Estudantes da África Negra sobre Dominação Colonial Portuguesa), cuja sede também estava em Rabat. Naquela capital marroquina, também voltei a encontrar-me com o doutor Agostinho Neto, que eu conhecia dos tempos, em que ele era Presidente do Clube Marítimo Africano de Lisboa. Durante as minhas conversas com o mais velho Amílcar Cabral, João Munguambe e Miguel Trovoada, na sede da CONCP, nunca lá apareceu o grumete Sérgio Vieira, nem mesmo para servir café. Obviamente que nunca, durante essas conversas, se falou dele, um ilustre desconhecido ou talento por revelar, no firmamento estrelado de Moçambique.
Fica assim esclarecido o primeiro lapso positivo ou criação original, quero crer que “involuntária”, da memória do General Catedrático.
Quanto à segunda inverdade, que lhe escapou, a de eu ter sido “curiosamente” escolhido como informador pela PIDE, não é aqui lugar para os devidos esclarecimentos. Os arquivos da PIDE-DGS estão abertos ao público, na Torre do Tombo, em Lisboa, onde o General Catedrático, poderá ir colher as informações de que venha a precisar.
Quando o paquete Santa Maria foi tomado pelo Capitão Henrique Galvão, eu era tripulante desse navio, mas não tenciono aqui encetar os meus “Testemunhos da Memória” a esse respeito, só vim ajudar o General Catedrático a não meter mais água.
Se, no Santa Maria, depois de ter sido controlado pelas autoridades portuguesas, eu tivesse recebido essa ordem imaginada pelo General Catedrático de içar a bandeira portuguesa, não sei como havia de esquivar-me, nem livrar-me de perder o emprego e de outras consequências, que talvez me tivessem levado ao Tarrafal, Cabo Verde em vez de desembarcar em Casablanca, Marrocos, mais tarde, e travar conhecimento com o grumete da CONCP, Sérgio Vieira. Logicamente não recebi ordem nenhuma, fora das minhas competências e atribuições. Içar e arrear bandeiras só compete aos oficiais da ponte. Eu trabalhava na câmara sob as ordens do comissariado do navio. Fica por esclarecer como é que tais imaginados acontecimentos, como eu a içar bandeiras no Santa Maria, fora da “parte limitada do todo”, que possui o General Catedrático, não estando presente naquele navio, tenham ido parar ao primeiro bosquejo dos seus “Testemunhos da Memória”.
Estive em Argel, apoiando o irmão João Munguambe, até Setembro de 1964, data em que fui estudar para Leipzig, na antiga República Democrática Alemã, com uma bolsa de estudos da UGEAN, cuja sede tinha sido transferida para Argel. Não voltei a ver o futuro General Catedrático na África do Norte. Ele seguiu para Argel, quando eu já estava na Alemanha.
Tornei a cruzá-lo, mais tarde e pela última vez, em Lourenço Marques, como ainda se chamava a cidade de Maputo, alguns dias depois das festas da independência. Fui cumprimentar o camarada Chissano e estava à espera de ser recebido. Apareceu Sérgio Vieira e disse-me para esperar, que o camarada Chissano me recebesse, enquanto ia a toda a pressa chamar uma patrulha de cerca de quinze militares armados, que vieram a pé, para me prender: “O camarada está dêtádo.”, disse-me o comandante da patrulha, com o seu sotaque característico. Eu regressava da República Democrática Alemã, com uma delegação chefiada pelo Vice-Primeiro Ministro daquele país e outros estudantes moçambicanos. Trazia os meus diplomas e conhecimentos, para trabalhar para o desenvolvimento de Moçambique e fui, desta maneira, recebido, por Sérgio Vieira.
Deus escreve certo por linhas tortas, Sérgio Vieira chegou a General. Se ele tivesse chegado a Almirante, depois de meter tanta água, com estes três grandes rombos no casco do seu navio, já tinha ido ao fundo.
Artur Janeiro da Fonseca
23 de Janeiro de
Eis então a resposta de Fonseca. Por engano, Fonseca escreveu “23 de Janeiro de
Certamente que Vieira dirá que é tudo mentira; mas fica sempre a palavra dele contra a de Fonseca, e um sorriso sarcástico do leitor ao tentar descobrir quem dos dois mente mais!...
Uma outra “mentira” que Sérgio Vieira não poderá negar foi a sua decisão, após ter mandado deter Artur da Fonseca, de enviá-lo para Ruarua, o tal centro de reeducação que o próprio Samora Machel afirmou, durante a famigerada “ofensiva na frente da legalidade” fazer-lhe sentir “palha no estômago” em face da tragédia lá ocorrida em termos de violações dos mais elementares direitos humanos. Tal como vários outros “centros de reeducação”, Ruarua funcionava sob a jurisdição do Departamento de Segurança da Frelimo, operando posteriormente sob a alçada do Ministério da Segurança-Snasp. Vieira esteve à testa destas duas sinistras instituições. Ruarua estava integrado num complexo de antigas bases militares da Frelimo em Cabo Delgado. Se Machel admitiu não conseguir “digerir” a realidade ruaruense, imagine-se o que não seriam os outros redutos das ditas zonas libertadas que Uria Simango já havia denunciado em Situação Triste na Frelimo. Desta face da moeda “zona libertada” nada nos diz o autor de “Participei, por isso testemunho”.
Fonseca conseguiu fugir desse antro da morte que chegou a ter como homens fortes Zacarias Zacarias, mais conhecido por “Zacarias²” e o próprio Salésio Teodoro Nalyambipano, mais tarde vice-ministro da segurança-Snasp e co-autor moral e material dos fuzilamentos sumários de M’telela. Na fuga, Fonseca foi acompanhado de Fanuel Malhuza, Atanásio Kantelu e pelo Diácono Sithole. O grupo que fugia de Ruarua conseguiu depois transpor a “barreira Tanzânia”, em que Mahluza por diversas vezes ludibriou a vigilância do regime de Nyerere, afirmando-se, ele e os restantes, como refugiados malawianos, fugidos do terror de Banda, expressando-se para tal em ciNyanja. O grupo conseguiu dinheiro para custear a viagem de machimbombo em direcção ao Quénia através da venda de um rádio portátil oferecido a Fonseca por um cidadão alemão em Dar-es-Salam. Fonseca travara conversa com o alemão, que estava sentado a seu lado quando ambos assistiam a uma partida de futebol num estádio da capital tanzaniana. Posto ao corrente do dilema de Fonseca e dos seus compatriotas, o cidadão alemão ofereceu o rádio pois era tudo o que tinha de valor em sua posse.
Em liberdade, Artur Janeiro da Fonseca viria a denunciar na imprensa alemã a experiência por que tinha passado, e a vivida pelos restantes e por vários outros antigos estudantes moçambicanos sumariamente presos à chegada aos aeroportos moçambicanos, vindos do exílio logo a seguir à independência e que o regime da Frelimo havia encorajado a regressar com a promessa de que as disputas do passado eram para esquecer. O autor de “Participei, por isso testemunho” escamoteia esta realidade amarga no capítulo dedicado à “União Nacional dos Estudantes Moçambicanos (UNEMO) e a luta patriótica” (pp 165-176).
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