Hoje, a Renamo assinala o 36° aniversário da morte em combate de André Matsangaíce. Como tem sido hábito, a data dá azo a duas interpretações distintas. Por um lado, a Renamo apresenta Matsangaíce como o fundador da Resistência Nacional Moçambicana, pioneiro da luta pela conquista da democracia e estabelecimento de um Estado de direito. Por outro, académicos, políticos, jornalistas e autores inseridos na narrativa oficial da história de Moçambique tratam a data como um mero episódio do que consideram ser a campanha de agressão, instrumentalização e «desestabilização» movida do exterior contra Moçambique pelos que se opunham à independência, que viam o novo Estado africano criado em Junho de 1975 como um “mau exemplo”. Concretamente, os valores defendidos pelo regime edificado em Moçambique – o seu suposto anti-racismo, a democracia popular, a liberdade restituída aos moçambicanos – chocavam com o racismo das minorias brancas da Rodésia e da África do Sul e tudo quanto representavam.
Em suma, pretende-se, na narrativa oficial, ecoada dentro e fora de Moçambique, despir a Renamo de qualquer legitimidade, negar a própria existência da Renamo, a razão de ser da luta por ela travada, e a essência da causa que defendia. Os trunfos principais: o facto de ter obtido apoios no exterior e desses apoios virem de regimes de minorias brancas. Daí a terminologia repetida amiúde: moçambicanos recrutados, instrumentalizados, treinados, equipados, armados, municiados, alimentados, apoiados, transportados e assessorados pelo apartheid, por colonos, e por eixos que iam de Pretória a Lisboa, de Lisboa a Bona, de Bona a Washington. Não fazia sentido o argumento de que a causa pela democracia pudesse ser apoiada que a negava nos seus próprios países.
Se essa narrativa exalta o apoio obtido no exterior pela Frente de Libertação de Moçambique ( Frelimo ) e que foi vário e multiforme – americano, chinês, cubano, soviético, coreano, alemão (RDA), tanzaniano, argelino, israelita, entre outros – já no caso da Renamo o apoio rodesiano e sul-africano passou a ser esgrimido como prova de que a Renamo não tinha razão de existir, que era um apêndice, um peão no contexto da Guerra Fria, um instrumento para forçar Moçambique a abdicar da sua opção, supostamente socialista, e virar-se para o campo capitalista. De novo o mau exemplo do sistema económico moçambicano que não poderia vingar pois assim comprovaria a inviabilidade do sistema de “acumulação capitalista” em vigor noutros países da região.
De facto, a África do Sul do apartheid negava à maioria negra do país o direito de voto, o mesmo fazendo a minoria branca da Rodésia do Sul.
Poder-se-ia então questionar o apoio de uma República Popular da China. O sistema político vigente neste país reconhecia os direitos fundamentais do povo chinês? Como é sabido, ainda hoje não os reconhece. A mesma pergunta poderia ser feita em relação a Cuba e a muitos outros aliados da Frelimo durante a luta pela independência. A resposta seria a mesma – exceptuando-se, por exemplo, os Estados Unidos e Israel que eram regimes democráticos e dos quais a direcção da Frelimo viria a desligar-se. Será que a natureza política dos regimes que apoiavam a Frelimo era o que determinava a essência da luta por ela travada para a conquista da independência? e o que ditava a vontade de sermos livres e independentes?
O regime instituído pela Frelimo um mau exemplo para o apartheid? Na essência, o regime da Frelimo e o apartheid tinham muitos aspectos em comum, complementavam-se até. Para além de negarem o direito de voto à maioria, ambos os sistemas deportavam cidadãos – o apartheid para bantustões, o regime da Frelimo para campos de trabalhos forçados, quer na fase da reeducação, quer na fase da Operação Produção. O apartheid perseguia, dentro e fora do país, oponentes seus, prendendo-os depois. Houve muitos que foram assassinados na própria África do Sul e no exílio. O regime da Frelimo fez precisamente o mesmo: Uria Simango, Gwengere foram raptados do exílio e depois sumariamente executados. Julgamentos? Não há memória de Joana Simeão ter comparecido em tribunal, idem aspas em relação a Adelino Gwambe, Paulo Gumane, Raúl Casal Ribeiro e dezenas de outros. Dulcie September, uma das vítimas do apartheid no exílio. Evo Fernandes, uma das vítimas do regime da Frelimo no exílio. O apartheid pelo menos restituiu Goven Mbeki, Walter Sisulo, Tokyo Sexwale à liberdade depois de julgados em tribunal. Nelson Mandela o caso mais emblemático. O regime da Frelimo nem sequer julgou aqueles que raptou e prendeu sem mandado judicial, nem tão pouco dá satisfações aos familiares de Eugénio Zitha, João Unyai, Júlio Razão Nihia, Celina Simango, Lúcia Casal Ribeiro e tantos outros cujo paradeiro permanece desconhecido.
Anti-racismo? Sim, o apartheid dos bóeres assinalava em praças e lavatórios públicos, em paragens de autocarros, aeroportos, escolas, parques municipais e em repartições públicas: “Whites Only”. No anti-racismo da Frelimo todos eram moçambicanos, mas desde que comungassem a ideologia do regime – se não o fizessem eram tidos como saudosistas do colonialismo e moçambicanos não originários, sendo-lhes vedado direitos políticos e económicos. Mas esta discriminação oculta datava do tempo da luta armada da Frelimo quando Mondlane era presidente. O apartheid tinha o pass book, o regime da Frelimo a guia de marcha.
Em suma, o bóer era um racista honesto. Os racistas da Frelimo eram – e são – desonestos; desonestidade que se manifesta em várias outras vertentes, designadamente em processos eleitorais. O apartheid dos bóeres dizia ao negro sul-africano: tu não votas no meu bairro, na minha aldeia ou na minha cidade segregada; vai votar nos homelands e nos bantustões. O apartheid da Frelimo dizia: todos têm o direito de voto, mas só existe um partido em quem votar; agora diz: todos podemos votar em mais do que um partido, mas antes do escrutínio o regime da Frelimo decide quantos votos o A, o B e C vai receber, e quantos lugares irá ter no Parlamento.
O sistema do apartheid dos bóeres quando decidiu encontrar uma solução negociada, sentou-se com representantes das raças que antes discriminava, segregava e oprimia. E depois assinou um acordo em que se comprometeu a devolver o poder à maioria.
O “mau exemplo” do regime da Frelimo, quando decidiu encontrar uma solução negociada, sentou-se à mesa com representantes da Renamo. E depois assinou um Acordo Geral da Paz em que se comprometia a organizar eleições livres, justas e transparentes. Ao contrário dos bóeres, os da Frelimo não cumpriram o que assinaram.
Joao Cabrita, no Facebook
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