Grande Reportagem
No dia em que o “Messias” voltou a Maputo
Maputo (Canalmoz) – 12 horas. O Aeroporto Internacional de Maputo começa a ter uma movimentação incomum. Crianças, jovens e adultos junt...am-se num descampado ao lado da Sala VIP do aeroporto, com camisetes e cartazes com palavras de ordem a favor da Renamo e do seu líder Afonso Dhlakama.
13 horas. O movimento intensifica-se e, num piscar de olhos, já havia um mar de gente, simpatizantes, curiosos, e passageiros que iam embarcar, ou que acabavam de desembarcar, mas que preferiram juntar-se à moldura humana. Entre a população, surge um cartaz que se tornou atracção pelo dia todo. “Dhlakama não é Savimbi. Moçambique não é Angola. Viva Dhlakama”, lia-se no cartaz, escrito a tinta encarnada empunhado por um grupo de jovens.
Tempo depois, uma viatura da marca americana Ford, de cabine dupla, chega em frente à Sala VIP transportando a guarda da Renamo. A chegada da viatura e a forma como os oito membros da segurança de Dhlakama saíram da viatura fez recordar as epopeias de Jonh Rambo. Inconfundíveis: boina preta, fardamento verde-oliva e uma cabeleira de quem não não se cruza com o barbeiro há já um bom tempo. Um detalhe: as botas não são idênticas, criando contraindicação ao conceito de uniforme. O mais extravagante calça umas botas da gigante de calçado de Massachusetts. É Timberland. O povo atinge a loucura, entre aplausos e gritos. “Tropas da liberdade”, grita um jovem estudante, que envergava uma bata da escola de aviação civil, que funciona a alguns metros do aeroporto. Ele e os seus colegas simplesmente abandonaram as aulas para verem chegar Afonso Dhlakama. A polícia foi mobilizada em peso e Jorge Khalau comanda, por alguns instantes, pessoalmente as operações.
15 horas. Uma outra agitação criada pela chegada de dirigentes da Renamo dá a ideia de que o avião está para aterrar em Mavalane. A imprensa acotovela-se, e a Polícia começa com a sua habitual “caça ao protagonismo”, naquele empurra-empurra para organizar os jornalistas. Falso alarme. Não havia avião a aterrar nem Dhlakama nenhum. Do outro lado, o povo, alheio a esta bagunça toda, dança ao som de uma canção feita para a ocasião, com o refrão “Dhlakama é o homem do povo”. Dançam, cantam, abraçam-se. “Está a vir o Messias”, grita um jovem lá mais para o fundo, palavras que, de seguida, se tornam coro geral: “O Messias está de volta”, respondiam outros, e assim ficou sentenciado. Era mesmo o regresso do “Messias” da Renamo.
Nisso, a Polícia tenta controlar a multidão, que quase se juntou à imprensa para, com recurso a telemóveis e outras plataformas, conseguir tirar uma foto para o infalível Facebook, ou mesmo para a mais recente das redes sociais, o Instagram.
“Afastem-se e deixem este lugar só para a imprensa”, ordena um agente da Polícia da República de Moçambique, com ares de estar a gostar do momento ímpar e de loucura popular que se vive. “O senhor não nos deve mandar embora daqui, porque queremos receber o Messias. Se não fosse o Messias, vocês estariam todos na escravatura”, grita em changana um jovem entre a multidão, que depois corre, para não ser apanhado pela Polícia. O agente olha para o jovem e fica a sorrir. Não sabemos se o sorriso concordava com os ditos do jovem, ou não. Mas sorriu.
Momentos depois, estaciona à saída da Sala VIP uma viatura de alta cilindrada Toyota Prado VX, de cor preta. A agitação aumenta, e os jornalistas correm de um lado para o outro, na falsa certeza de que seria aquela a viatura a transportar Afonso Dhlakama. “Lembre-se que Dhlakama disse que quer um “by four by four” [como ele diz], comenta o meu colega André Mulungo, recordando uma das entrevistas dada por Afonso Dhlakama, em que deixou claro o seu pendor para viaturas “four by four” [“quatro por quatro”]. Tudo muito agitado.
Nesse momento, saem da sala VIP dois dirigentes do partido Frelimo, nomeadamente Manuel Tomé, antigo Chefe da bancada, e o porta-voz da Comissão Permanente da Assembleia da República, Mateus Katupha, que acabavam de chegar de viagem. Não acreditavam no que viam. Mas, como o evento não lhes dizia respeito, a imprensa tratou de ignorá-los. Queriam o “Messias”. A viatura Prado de alta cilindrada era daqueles quadros da Frelimo, que, pela dimensão do evento, passaram despercebidos.
Tempo depois, uma outra viatura de marca Toyota Prado, com a parte frontal coberta com uma bandeira da Renamo e com fotografias do líder da Renamo, também estaciona à saída da Sala VIP. “Este carro só pode ser o que vai levar o líder”, comenta um colega da televisão. A agitação volta a instalar-se. Da viatura, sai Manuel Bissopo, o secretário-geral da Renamo. Desde aí, ficou claro que o “Messias”, aliás Afonso Dhlakama, estava mesmo para chegar. A agitação aumenta de forma impressionante. Pessoas que estavam ali naquele local há mais de quatro horas continuavam com energia para cantar e dançar. Enquanto isso, António Muchanga organiza as pessoas para dar um cunho de civismo à recepção. Uma nota: contrariamente aos eventos do partido no poder em que o chamariz é a comida e músicos financeiramente capturados, ali não foi dada comida de borla nem havia artistas famosos para atrair pessoas. Os cidadãos mobilizaram-se por si, de coração, consciência e alma para verem o líder da Renamo. Passaram fome e frio para testemunhar a chegada do seu “Messias”.
A imprensa volta a acotovelar-se, quando dirigentes da Renamo entram na sala e depois se vão perfilar à boca da placa. As certezas de que a vinda do “Messias” era dado adquirido começaram a ganhar mais corpo. Do lado de fora rufam os tambores, acompanhados por palmas, entre cânticos e palavras de ordem. A agitação da imprensa é uma nota constante. Os colegas de uma cadeia de televisão estrangeira, a Al Jazeera, quase que entram numa crise de nervos. Estão naquele local desde as 11 horas e já enviaram uns sete despachos em que em nenhum deles anunciavam a chegada do líder “do movimento rebelde”, como diziam. O operador de câmara, que até se divertia com as danças dos grupos culturais, parecia mais calmo. O repórter, nem tanto, porque tinha a dura missão de ir idealizando a intervenção a seguir, logo que o seu Smartphone chamasse a dar indicação para entrarem em directo. Intercalava o aborrecimento da espera com um maço de cigarros, até que um cidadão do protocolo começa a chamar os órgãos de comunicação que deviam entrar para a pista para registarem imagens. Só podiam entrar as câmaras de filmagem e as câmaras fotográficas. Os jornalistas deviam permanecer do lado de fora. Entrei em desespero, porque não queria perder aquele momento. Foi aí que encontrei um jovem afecto ao protocolo, que leu o meu nome no crachá que eu trazia ao pescoço e disse ser um grande fã meu e leitor assíduo do “Canalmoz” e do “Canal de Moçambique”. “Entra Guente, e não fui eu quem te deixou passar”, disse ele, olhando para outro lado. Nem mais, contornei os agentes da Polícia e lá estava eu dentro da pista.
Uma olhada atenta, e consigo reconhecer uns três agentes dos serviços secretos disfarçados de jornalistas e com câmaras fotográficas e de filmar. Não é necessariamente nova a aparição de agentes dos Serviços de Informação e Segurança do Estado (SISE) em eventos da oposição e tratei logo de fingir que nem os tinha visto, até porque o evento era grande demais para que o destaque fosse dado aos espiões do regime. O mais agitado trazia um colete de imprensa oferecido por umas das companhias de telefonia móvel no âmbito do seu marketing e empunhava uma pequena câmera de filmar que o auto denunciava que era ele, um cidadão a mais naquele lugar.
18:02. Já estamos perfilados na placa, para registar as imagens. O agente da Polícia volta a repisar: “Só estão aqui fotógrafos e ‘cameramans’. Não quero confusão”. O enunciado leva-me ao desespero e sou obrigado a pedir emprestado uma maquineta fotográfica não profissional, só para ludibriar o agente. Mas como a máquina era pequena, juntei-a a um carregador de um computador para dar uma impressão mais aparatosa e confundir o agente, que queria ver máquina ou câmara grande nas mãos dos que lá estavam.
18:10. Um Embraer da LAM, operado pela Mex, aterra em Mavalane e cria agitação. “Não é esse”, sossega-nos António Muchanga, com ares de muita felicidade pelo que se estava a passar.
18:15. Mais um Embraer, operado pela MEX, também aterra em Mavalane e agita a imprensa. “Também não é esse”, sossegou-nos um agente do protocolo do Estado, que havia sido afecto ao grande evento.
“Afinal, o ‘Messias’ chega, ou não chega?”, perguntou um colega estrangeiro. Respondi-lhe que tinha a certeza de que Dhalakama chegaria num Embraer operado pela Mex, tendo como base a última actualização feita no “timeline” do Facebook da deputada Ivone Soares, que estava na comitiva.
18:25. Chega o avião transportando o líder da Renamo, Afonso Dhlakama. Era mesmo um Embraer operado pela Mex. “É este o avião que traz o presidente”, informa o protocolo. Histeria total em Mavalane. Quase todos os trabalhadores do aeroporto abandonam os seus postos e entram para a placa para testemunhar a chegada ou o regresso do “Messias”. O acontecimento contagiou toda a gente. Mas a porta do avião ainda permanece fechada. Abre-se a porta, e atrás de uma senhorita da tripulação bem parecida e com cabelos importados vulgo “extensões”, sai o líder da Renamo, Afonso Dhlakama. Toda a gente presente na zona da placa, incluindo os trabalhadores do aeroporto, que haviam abandonado os seus postos, começam a aplaudir. “É o líder. Viva o líder. Está aí o grande velho. O velho Dhlakas está de volta”, foram as formulações frásicas que conseguimos registar. Dhlakama acena com o seu braço direito, e a comitiva de recepção atinge vai à loucura.
Já fora do avião, Dhlakama recebe uma coroa de flores de duas crianças devidamente “protocoladas” e retribui o carinho com dois beijinhos. Aliás, deu também beijinhos à criança do sexo masculino. Entre beijos e abraços, o mais demorado foi com António Muchanga, seu porta-voz, que ficou detido mais de um mês e foi “salvo” pela amnistia. A imprensa desorganiza-se, na tentativa de colher a primeira reacção do líder, que abandonou a capital em 2009. Na pista, Dhlakama só disse “obrigado” e pediu licença para passar.
Foi até à Sala VIP, onde manteve um breve encontro com os embaixadores dos EUA, da Grã-Bretanha, da Itália e de Portugal, que o acompanharam na viagem. À saída da Sala VIP, deu uma curta entrevista e, no seu jeito característico, tratou de desmentir informações de que estaria doente, tal como a propaganda pró-Frelimo tratou de inventar. “Estou bem. Estou gordinho, bonitinho e com gravata”, fez questão de clarificar. Enquanto dá a entrevista, a comitiva de recepção canta: “A sua ida à Gorongosa foi importante para a nossa liberdade. A sua história é a história do povo”. Com o coro como som de fundo, Dhlakama fala à imprensa e diz que está satisfeito com a luta que travou, porque cada moçambicano consegue agora ver que a Frelimo estava a explorar o povo. Disse que a sua luta era para os jovens, para que tenham um futuro menos sofrido do que a sua juventude.
Já do lado de fora, o povo atingia a loucura. “Messias, Messias, Messias”, gritava a população, mesmo antes de ver Afonso Dhlakama. Quando Afonso Dhlakama sai da Sala VIP e acena, toda a população quis tocar-lhe e saudá-lo. A segurança não permitiu excessos, e quem teve sorte conseguiu. “Viva Papá Dhlakama. Pai da democracia”, cantava a população. Dhlakama subiu para uma viatura improvisada e fez o seu primeiro discurso em Maputo. Loucura total. “É, É, É papá”. “É, É, É papá”, “É, É, É papá” cantava a população que não se continha de emoção. “Obrigado pela recepção. Eu sou Dhlakama e estou aqui”, disse Dhlakama, enquanto a população entrava em delírio. “Dhlakama é carismático”, comentou um jovem que não conseguia ver o líder da Renamo, mas fazia de tudo para ouvi-lo. Depois do discurso amplamente ovacionado, Dhlakama entrou numa viatura Ford escoltada pela Polícia de Protecção, pela FIR e pela sua guarda pessoal, e seguiu-se uma longa caravana, do aeroporto até à Praça da OMM, zona em que se desfez, porque Dhlakama, daí, seguiu para a sua residência. Pelo caminho, os automobilistas imobilizaram as viaturas e com as buzinas saudavam o líder da Renamo, criando engarrafamento do lado contrário da avenida. “Este Dhlakama dá-nos maçada”, comentou um agente da Polícia que organizava o trânsito na Avenida Joaquim Chissano. E Era maçada mesmo. Nunca depois de Samora Machel, um outro cidadão criou agitação semelhante. Por todas as avenidas em que Dhlakama passou, o trânsito simplesmente parou. Este é o retrato mais aproximado do regresso de Afonso Dhlakama a Maputo, cinco anos depois. Fica o registo. Afonso Dhlakama paralisou a capital e ficou a merecer o título de “o bestial que não aceitou ser besta”!
(Matias Guente, Canalmoz)
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