Saturday, 26 April 2014

Aberrações à moçambicana

Aberrante, assim classificou as últimas propostas da Renamo, José Pacheco, o negociador governamental em desespero de causa. Mais ou menos aberrante, inusitado, em demasia, terão dito também muitos moçambicanos às exigencias para que haja homens de Afonso Dhlakama no topo da hierarquia das Forças Armadas e da polícia.
Passaram mais de 21 anos sobre o Acordo de Paz de Roma, a Renamo ocupa os seus assentos no Parlamento como partido de oposição e as nomeações nas Forças de Defesa e Segurança são de há muito um mister governamental. Isto seria a normalidade.
Mas esta não é a realidade moçambicana e a presente situação é ela própria uma bizarra aberração. Nos últimos meses várias leis foram alteradas num frenesim inédito sob pressão de homens armados nas florestas moçambicanas e com a casa das leis – o órgão legislativo por excelência – a cumprir os entendimentos dos senhores da guerra de carimbo em punho.
Conjunturalmente, as últimas propostas da Renamo são um teste claro à capacidade de encaixe do governo, perante o que os ortodoxos e conservadores do regime apelidam de concessões feitas aos antigos  beligerantes do conflito armado moçambicano.
Porém, para além da poeira e dos jogos de palavras, as propostas da Renamo não têm nada de extraordinário. Foi assim que foram estruturadas as chefias militares depois do Acordo de Paz, no Exército, Marinha e Força Aérea, na própria estrutura do Estado-Maior. E também assim deveria ter acontecido na polícia e nos serviços de segurança. Como nunca deveriam ter ficado para trás assuntos pendentes de homens armados à revelia das instituições do Estado.
O Governo - ou mais propriamente a direcção do Partido Frelimo - porque o Executivo cumpre as orientações do partido dominante, tudo  fez para se afastar dos compromissos de Roma, do espírito de reconciliação nacional e de uma paz sem vencedores nem vencidos.
Sistematicamente, e muitas vezes de forma humilhante, nos 21 anos de ausência de guerra foi feita uma verdadeira limpeza dos homens da guerrilha nas forças armadas, permanecendo a polícia e a segurança de Estado, duas instituições fortemente politizadas e com sinal claramente Frelimo. No Aparelho de Estado o mesmo regime de intolerância foi mantido. Qualquer novo director tem habitualmente na sua secretária, logo após a nomeação, uma ficha de inscrição no partido Frelimo.
Joaquim Chissano, numa entrevista recente, conseguiu dar apenas um único exemplo de integração no Aparelho de Estado, nomeação que foi prontamente revertida quando deixou o mandato.
Angola e José Eduardo dos Santos, habitualmente muito criticados pelo modelo de partido dominante naquele país irmão, e apesar das críticas permanentes da Unita, têm levado a cabo uma notável política de integração dos antigos beligerantes de Jonas Savimbi. No governo, a nível ministerial,
no corpo diplomático, nas Forças de Defesa e Segurança, no mundo dos negócios. Moçambique, pelo contrário, e sobretudo na actual presidência, tudo parece convergir num único sentido. A falta de oportunidades no mundo dos negócios deixa os próprios quadros da Frelimo exasperados, como aconteceu no mais recente episódio com a migração digital. A impunidade é tal que os militantes do
partido dominante acham normal proceder ao enchimento de urnas para viciar resultados eleitorais. Como aconteceu em Novembro nas eleições autárquicas.
Pode parecer aberrante, mas 21 anos depois de os moçambicanos terem em soberania posto fim a um conflito armado sangrento, a Renamo está a tentar repor o espírito de Roma, mesmo que isso seja difícil de engolir para amnésicos e autistas.
A democracia não é apenas um exercício de voto em cada cinco anos. A democracia é também feita de percepções em que os que perdem nas eleições ganham noutros tabuleiros. No mérito das qualificações académicas e intelectuais, na equidade nas oportunidades de negócio por oposição ao vicioso vergão da exclusão para quem não pertence ao partido dominante.
São estas as questões de fundo que explicam os posicionamentos da Renamo no arremedo de democracia para onde nos conduzem obstinadamente os actuais dirigentes do dia.
O que é de facto uma aberração.




Editorial do Savana, 18/04/14
 

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