Empurrado para uma guerra que não quer, não compreende e, quiçá, julga injusta, um polícia de 21 anos foi morto em sede de um conflito que exigiu o seu sangue, mas discute os direitos de uma minoria. As manifestações de repúdio inundaram as redes sociais e agora não se trata de mais um mero dado estatístico. Não é mais um para engrossar as fileiras dos mortos da paridade. É um jovem que auferia menos de 3.500 meticais e que nas horas vagas, livre da farda, se transforma num cidadão comum. Um pobre como os outros. Com os mesmos dramas, dívidas, sonhos e frustrações.
Imediatamente – ao contrário do que é suposto ouvir quando se fala de baixas do lado do Governo – o polícia tornou-se humano, ganhou nome e alguma dignidade. Dignidade essa que a farda nunca lhe conferiu. Descobrimos então que se tratava do filho de uma família ou mesmo um pai que pagava as suas contas religiosamente. Amaldiçoamos a guerra e tudo o que ela representa.
Não sabemos, no entanto, se é pelo facto de ser polícia que lamentamos a sua morte ou se foi pelo facto de este incidente ter despertado, na nossa consciência colectiva, a dimensão do ser humano. Ou seja, não sabemos se compreendemos agora que a farda esconde um homem como outros. Homem, esse, que muitas vezes dispara contra o povo a contragosto. Homem que veste a camisola da FIR ou das FADM e até da PRM e até da Renamo, mas, mal despe o fardamento com o qual nos oprime e restringe os direitos também ele, por sua vez, é oprimido pelo transporte, pela guerra que também não lhe permite visitar parentes e pelo salário de miséria que lhe é igualmente pago para proteger um sistema que o (nos) marginaliza.
Esse mesmo sistema de injustiça e enriquecimento de uns poucos que lhe retira, regra geral, a dimensão humana e o transfigura no maior inimigo do povo. Esse mesmo povo que sofre tudo enquanto os governantes tomam whiskys e andam de carros topo de gama nas artérias de um país que sangra pelos poros. Foi preciso uma morte para – do nosso ponto de observação – conseguirmos compreender que o polícia é um cidadão. Que foi um irmão que tombou. Que a guerra, seja qual for o motivo, não deve beber o sangue das vítimas da arrogância dos donos do país. O poder não pode custar a vida de cidadãos que nem sequer têm onde cair depois de exaustos.
Agora compreendemos que esse polícia é tão vítima como nós. Aliás, ele é duas vezes vítima. O homem afinal não dispara porque quer, mas porque jurou proteger um poder que não lhe liga patavina.
E morrem todos os dias, por causa dessa guerra estúpida, militares, guerrilheiros, polícias e civis. Contudo, o que nos mata, enquanto povo – sem generalizações – é a nossa mania de seleccionar o repúdio e definir os nossos amigos por trás das armas que nos tiram a vida. Quem levanta uma arma não pode, de forma alguma, ser tido como inocente no meio da história. Os que matam camponeses precisam de ser julgados, mas também aqueles que tiram a vida a um mero polícia de 21 anos.
Esse que é, como dissemos, duplamente vítima. E o pior é que não sabe e jamais saberá de que valeu a sua morte...
Editorial, A Verdade
Editorial, A Verdade
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