Tuesday, 3 May 2016

Entre a dívida escondida e o conflito aberto, Moçambique teme regresso ao passado

 

 
Moçambique era até há poucos anos o país do futuro em África. Mas a “história de sucesso” é hoje a de um recuo aos tempos da guerra e da crise económica.


Nos últimos dias, as ruas de Maputo foram fortemente patrulhadas por carros blindados do Exército. Nas lojas e mercados, os preços dos produtos básicos sobem sem cessar e não há previsões de que a inflação possa vir a ser travada. Na Gorongosa, no centro do país, foi encontrada uma vala comum com corpos de dezenas de pessoas, vítimas do conflito armado que tomou conta da região. O retrato de Moçambique atira o país para um passado recente que todos pensavam já ter ficado para trás.
Estes dois episódios – a dívida pública insustentável e o confronto armado entre o Exército e a Renamo – marcam o dia-a-dia da antiga colónia portuguesa, onde Marcelo Rebelo de Sousa inicia uma visita de Estado, esta terça-feira. E é a incredulidade que domina os pensamentos da população. “O que muita gente não compreende é como Moçambique, depois de se ter esforçado tanto para ganhar confiança dos credores e poder ter a dívida perdoada, volta a um estado que não lhe permite ter uma economia saudável. Mas muitos moçambicanos também não compreendem como é que, vinte anos depois, voltamos a um conflito armado”, resume ao PÚBLICO Jorge Matine, do Centro de Integridade Pública – uma organização não-governamental que defende e monitoriza a transparência da actividade do Estado.
O Presidente da República aterra em Maputo mais de uma semana depois de ter estalado o escândalo da “dívida escondida”. No total, o “buraco” nos cofres públicos é superior a 1400 milhões de dólares. Para além dos empréstimos, no valor de 850 milhões de dólares, contraídos para estabelecer a Empresa Moçambicana de Atum (Ematum), há dívidas garantidas pelo Estado, entre 2013 e 2014, de 622 milhões de dólares a favor da Proindicus e de 535 milhões de dólares para a Mozambique Asset Management (MAM).
A directora do FMI, Christine Lagarde, chamou de imediato o primeiro-ministro moçambicano, Carlos Agostinho do Rosário, a Washington para pedir explicações e decidiu cancelar a visita de uma missão do fundo, bem como o desembolso da segunda parcela de um empréstimo de 286 milhões de dólares, acordado no ano passado. Seguiram-se o Banco Mundial e o Reino Unido que suspenderam alguns dos empréstimos concedidos ao país, e a União Europeia deve seguir pelo mesmo caminho.
O impacto do episódio junta-se a um panorama económico que já não era saudável. Nos últimos anos, a economia já estava em abrandamento e a descida do preço das matérias-primas levou a uma queda do valor da moeda local, o metical, de 35%. “O dólar ultrapassou esta semana a barreira psicológica dos 60 meticais no mercado informal”, diz ao PÚBLICO o editor-executivo do semanário Savana, Francisco Carmona. E ainda pode piorar. A agência de notação financeira Fitch baixou o rating da dívida do país devido à “deterioração abrupta” da sustentabilidade da dívida pública e prevê que o seu valor ultrapasse os 100% do PIB até ao fim do ano. A inflação subiu sem controlo na última semana, com os preços de vários produtos a aumentarem em flecha. Os próximos dias podem trazer aumentos nos impostos, prevê o jornalista da Savana.
O Governo invocou o actual conflito militar no centro do país para justificar o segredo em torno dos empréstimos contraídos e que foram investidos no sector da Defesa. O economista Jorge Matine considera que esta "não é uma justificação plausível, tendo em conta que há outros mecanismos que o Governo podia ter mobilizado para partilhar as informações: o Parlamento, a comissão de segurança”, acrescenta.
O escândalo foi aproveitado pela Renamo, que acusou o Governo de ter tentado esconder um “golpe do baú”. Nas redes sociais, circularam nos últimos dias mensagens anónimas a convocar para uma manifestação com o objectivo de paralisar a capital. O Governo da Frelimo não hesitou e tem enviado diariamente carros blindados patrulhar as ruas de Maputo, apesar de o movimento nada apresentar de anormal, segundo várias agências noticiosas.
“Levar para a rua blindados e colocar uma cidade em terror e em medo, claramente viola o direito das pessoas em manifestar a sua insatisfação”, diz ao PÚBLICO Zenaida Machado, especialista da Human Rights Watch (HRW), a partir de Londres.

Dez mil refugiados

Ao mesmo tempo, o Governo da Frelimo está embrenhado num conflito não declarado com o braço armado da Renamo na zona central do país. A partir da região da Gorongosa, o líder histórico do partido de oposição, Afonso Dhlakama, continua a ameaçar tomar o poder pelas armas na província, onde diz que o seu partido venceu as últimas eleições presidenciais, em Outubro de 2014.
“Há vários abusos de ambas as partes”, sublinha Zenaida Machado. A ex-jornalista da BBC descreve ataques a vilas pelo Exército para perseguir indivíduos suspeitos de pertencerem à Renamo. “Invadem vilas, queimam as palhotas e as machambas [plantações].” Em Fevereiro, elementos do Exército na província de Tete, no norte, foram acusados de maus-tratos, abusos sexuais e até execuções sobre a população local. Em cinco meses, mais de seis mil pessoas procuraram refúgio no campo improvisado de Kapise, no Malawi, segundo a HRW. Actualmente estão neste campo cerca de dez mil, de acordo com o Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR).
As acções da Renamo são feitas sobretudo através dos ataques a estradas para desestabilizar o transporte de mercadorias na região, sobretudo a importante M1. “Muito recentemente houve um relato de um carro que foi atacado e morreu um bebé”, conta Machado. No fim-de-semana, um ataque a uma esquadra terá morto cinco civis.
Com a paz obtida em 1992 e um perdão da dívida no início do novo século, Moçambique tinha o caminho aberto para o desenvolvimento, sobretudo após a descoberta de uma das maiores reservas de gás natural do planeta. Pelo menos, assim era o quadro apresentado pela imprensa internacional e pelos relatórios das instituições financeiras. Num continente de más notícias, “todos queriam que Moçambique fosse um bom exemplo”, observa agora Jorge Matine.
No apetite por uma história de sucesso, foram esquecidos factores importantes, como a educação, a inclusão política ou a distribuição de recursos, diz o economista. A falta de concretização de todos estes aspectos “concorreu para que Moçambique se ficasse apenas pela vontade”.




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