"Veem estas acácias rubras?", diz Mia Couto ao volante do seu jipe, apontando para as árvores de flores vermelhas que povoam as ruas por toda a cidade. "São a árvore típica de Maputo, mas vieram de Madagáscar. O nome técnico é delonix regia, ou flamboyant. Mas se começo a falar destas coisas que adoro nunca mais me calo... " Corrigimos. Fale por favor, é mesmo essa a ideia. Esta conversa-percurso com Mia por Maputo quer-se emocional, sem guião, feita ao sabor das árvores e das recordações.
Paramos na Avenida Frederich Engels, a rua mais bonita de toda a cidade. Os bancos coloridos voltados para o mar convidam à contemplação, a vista para a baía é deslumbrante. "Aqui desaguam cinco rios. A zona portuguesa estava confluída a uma pequenina faixa de areia ali em baixo, hoje a grande avenida da baixa da cidade era um paliçada militar. Ali começava o território 'dos outros'", conta. "Com a chegada dos boers, o governador português quis fazer de Maputo uma cidade portuária. Fez uma obra monumental, com enormes movimentações de terras, criando esta muralha que ainda existe. Este movimento deu origem ao que chamavam a Nova Buenos Aires, as pessoas vinham encontrar-se com os novos ares que havia na baixa. Ali ficou, até hoje, o centro de gravidade da cidade".
Seguimos viagem para o Jardim dos Namorados, uma zona com lugar de destaque no coração de Mia Couto. Não por razões de amor, mas pela memória da dedicação a uma causa. Ali era ponto de encontro dos casais apaixonados, e onde Mia vinha fazer os encontros secretos do movimento estudantil ao qual pertencia, com ligações à Frelimo. "Fingíamos que éramos mais uns. Como isto é feito em socalcos por ali abaixo, se houvesse algum problema conseguíamos entrar por um lado e sair no outro. A célula secreta a que eu pertencia reunia no jardim, foram os melhores tempos da minha vida. Tinha que fingir que namorava com várias meninas diferentes, vejam a sorte!", graceja. Foi aqui que conheceu Patrícia, que viria mais tarde a ser a sua segunda mulher.
Os pais, portugueses emigrados, viviam na Beira, que era do ponto de vista político e social uma cidade muito diferente de Maputo. "Não era preciso explicar que havia uma coisa chamada subjugação colonial. O meu pai já tinha uma posição muito crítica em relação ao regime, ele saiu de Portugal também já por questões políticas. Era fácil, sem que ninguém fizesse alguma catequização, perceber o que se passava. Era tão gritante a tensão, que acabávamos sem querer por tomar partido pró-moçambicano. Foi uma coisa que aconteceu naturalmente para mim e para os meus irmãos, a vida decidiu por nós." Quando veio para a universidade de Maputo, em 1972, sempre soube que não vinha propriamente estudar. Vinha fazer oposição. "Escolhi o curso de Biologia no catálogo 'O que é que não serve absolutamente para nada?' Então é este! Para mim não fazia nenhum sentido vir fazer a tropa", partilha. Pela Frelimo e pela independência nunca pôde pegar em armas por ser branco. "Naquela altura eu não sabia disso, estava convicto de que vinha lutar."
Continuamos o percurso pelo jardim, e a atenção de Mia foca-se num canhoeiro, a árvore sagrada, onde os moçambicanos depositam as cinzas dos seus antepassados. Nos seus livros, é permanente a relação com os mortos. "Para se perceber África e estas pessoas é preciso perceber essa espiritualidade. Os mortos em África não só não morrem e continuam presentes, como comandam. Determinam. E se não tivermos uma relação de harmonia com eles a vida não vai correr bem", explica. Só se pertence verdadeiramente ao lugar onde estão os seus mortos, disse um dia. "Eu tenho de inventar os meus mortos aqui, porque os meus verdadeiros mortos estão em Portugal. O meu pai morreu há poucos meses e quis ser enterrado lá".
Mas Mia, voltemos à conversa dos tempos da Frelimo. Que sonho era esse? "Era uma causa que eu hoje olho à distância, politicamente já percebi que nos enganámos todos. Não por causa da intenção de fazer um mundo melhor, mas por causa da concretização. Tínhamos um olhar muito ingénuo. Felizmente o mundo é muito mais complexo e cheio de variáveis que nós não dominamos. A ideia de, numa geração, criar uma sociedade nova era algo muito bonito mas desastroso na concretização." Mas foi essa espécie de sentimento épico que lhe proporcionou uma adolescência feliz e preenchida. "Entregámo-nos a uma coisa que era maior do que nós mesmos, era uma coisa generosa. Vejo, nos meus três filhos, que hoje é tudo tão diferente. Faltam-lhes as grandes narrativas, a política que fascina. Hoje a política foi apropriada por interesses tão mesquinhos e tão privados, tão conspurcada pelo oportunismo, que perdeu o brilho."
"Inventa qualquer merda!"
É hora de seguir viagem. Entramos no carro em direção ao Museu de História Natural. E Mia recorda-se de uma história divertida. "Fui uma vez a Paris numa conferência, e precisei de um tradutor, um brasileiro, pianista, muito formal de fato e gravata. Era uma assembleia enorme de mais 400 pessoas, uma coisa séria. E o francês faz-me uma pergunta que demora 10 minutos. Sobre esta coisa da globalização versus não sei o quê, dos nacionalismos e blá blá blá, e eu com o meu francês peço para repetir por favor porque não tinha percebido bem. O tipo repete e demora mais 20 minutos. O brasileiro, sentado numa cadeira pequenina ao meu lado, falando-me ao ouvido para todos pensarem que estava a traduzir, diz-me: 'Não entendi porra nenhuma! Inventa qualquer merda!'. Aquilo ficou como um lema para a minha vida, eu invento qualquer merda!" Gargalhada geral no carro.
Mas Mia, há aí qualquer coisa de português nessa noção muito lusa do 'desenrasca'. É um moçambicano convicto, o que há afinal em si da alma lusitana? "Tenho mescladas em mim várias coisas que são portuguesas, e eu não fujo das minhas origens. Há uma certa nostalgia, uma certa necessidade de ter saudade de coisa nenhuma." E sente que a sua pátria é a língua portuguesa, como dizia Pessoa? "O que eu acho mais bonito na língua é que facilmente deixa de ser portuguesa e facilmente passa a ser misturada, mestiça. Eu vejo a língua como uma coisa viva, em evolução. O acordo ortográfico foi como se não tivesse existido. Irritaram-me as razões que se invocaram, como se fosse uma coisa imperiosa e que daí nascesse algo mais próximo entre nós, portugueses, africanos e brasileiros. Isso é inventado, é artificial, não é por aí. Entristece-me ver a língua como um investimento político e económico."
As conversas são como os cajus, e vão parar ao futuro de Moçambique. "Muitas decisões que são tomadas hoje apenas servem interesses de grupos. Mas não tenho muita esperança que possa ser de outra maneira. A história mostra que foi assim que, ao longo dos tempos, foram criadas as burguesias, o capital nacional, etc. Se houver estabilidade política e social, este país vai crescer. E vai ser, no futuro, um país como os outros todos. Os meus ideais de juventude tiveram de ser ajustados à realidade e às dinâmicas de mudança do mundo. A pior das ditaduras é a da realidade, a do possível. Tive de engolir isto. Não quer dizer que eu não seja feliz a construir este Moçambique, é o Moçambique possível."
Passamos no antigo edifício da câmara, onde esteve a gestão da cidade colonial. Circundamos a estátua de Samora, que substituiu a de Mouzinho de Albuquerque a cavalo. E Mia recorda-se dos "tempos do carapau e do repolho", em que corria a cidade em busca de comida durante a guerra civil. Foi dos poucos brancos lusodescendentes que cá ficaram. No tempo das "filas das pedras", em que se marcavam os lugares para a espera com uma cesta com uma pedra lá dentro, na maior parte das vezes nem se sabia o que estava para chegar. "Parece que vai haver peixe, e ali ficávamos...". E os lugares eram respeitados. "Hoje olho para trás e pergunto-me o que é que se passava em mim para nem sequer levantar a hipótese de sair. Eu tinha filhos, e saía de manhã com a mesma preocupação que tinha toda a população: voltar ao fim do dia com alguma coisa para eles comerem. Mas era muito curioso. Quando se diz que a miséria moral nasce da miséria material, não acho que seja verdade. Quando se apanhava qualquer coisa, era tudo distribuído pelos familiares. Chamávamos os vizinhos, havia uma genuína partilha do pouco que existia."
Salvo pela poesia
E foram tantos os momentos de aventura nos tempos de oposição. Como aquele em que se ofereceu para ser membro da Frelimo, e foi aceite numa cerimónia secreta. "Fui para uma casa à noite, nem pude ver qual era o caminho para não saber onde ficava. Quando cheguei lá, os candidatos tinham de contar uma história que era a 'narração do sofrimento'. Cada um tinha de mostrar quanto sofreu para merecer a honra de estar ali. E todos tinham razões profundas, e eu, que fui o último a falar, não tinha nada. Era um privilegiado, uma pessoa feliz. Estava aflito, comecei a pensar 'tenho de inventar um sofrimento instantâneo'. Mas quando me pus em frente da assembleia, o fulano reconheceu-me e perguntou 'você é aquele que publica aqueles poemas no jornal! Ah, você é poeta! Precisamos de vocês!' E não tive de contar história nenhuma. A poesia afinal tinha algum serviço. A mim salvou-me!"
Nunca teve medo, sendo um branco lusodescendente, nem nunca sentiu racismo. "Todos conheciam a minha ligação ao partido. Mas tive medo, porque esta guerra era absurda, morria-se sem razão aparente. Uma vez saí da cidade sozinho, para fazer uma inspeção dos estragos de um petroleiro que tinha naufragado, e quando voltei senti um silêncio absoluto que me preocupou. O jipe enterrou-se na margem do rio, e passou um fulano que me disse: 'Você saia daqui imediatamente, isto está um caos, a Renamo está à porta'. Deixei o jipe, veio um amigo dele com uma canoa que me levou, e aí percebi que vivíamos uma guerra aqui muito próxima e que às vezes nos esquecíamos dela. Uma colega minha foi assassinada a cinco quilómetros da cidade."
Chegámos ao museu de História Natural, um edifício inspirado no estilo manuelino. Dois animais embalsamados guardam a porta. Ao fundo, impõe-se colorido um painel de Malangatana para onde nos dirigimos. Mia conta histórias de outros tempos com o pintor. "Ele era um 'homem show'. Além de pintar, cantava e dançava, usava a barriga como tambor. Uma vez estive com ele uma vez numa conferência no estrangeiro, e no último dia veio dizer-me que o programa tinha sido alterado para se incluírem cantares moçambicanos na sessão de encerramento. E eu perguntei 'olha que giro, quem é o grupo que vem cantar?'. Ele olhou para mim e disse 'o grupo? Então, sou eu e tu!'. Fiquei aflito, tentei explicar-lhe que não cantava. Mas para ele não era possível uma pessoa não cantar. Toda a gente canta!", conta. Para Mia, Malangatana foi um exemplo de alguém que se entregou de alma e coração a uma causa, sem nunca ter feito uma declaração de amargura pelos momentos difíceis que viveu.
Uma planta no jardim chama a atenção de Mia. É uma cica. "Já viu isto? São células sexuais nuas e reproduzem-se só pelo vento. Foi feita no momento em que a natureza ainda não sabia desenhar flores. Inventar a cores, os formatos, os desenhos foi um trabalhão enorme e veio muito depois."
Entramos no museu, uma mostra estática, com uma coleção de animais africanos embalsamados. Elefantes, impalas, leões pousam numa savana improvisada. Mas Mia destaca a coleção de dezenas de fetos de elefante embalsamados, nos vários estágios de gestação. "É um exemplo da crueldade em nome da ciência. Mataram milhares de fêmeas para apanhar os 20 meses de gravidez...".
Seguimos para a zona dos artefactos tribais, tanto macuas, o grupo étnico mais numeroso do país, como macondes. "Algumas destas culturas são do interior, que só muito recentemente tiveram contacto com o litoral. O que deu azo a algumas expressões muito poéticas. Pescar eles dizem caçar peixe, e barco a vapor chamam comboio da água", explica Mia.
Mostra um peixe de dois metros, o selecante, uma espécie em vias de extinção típica do norte, que vive em águas muito profundas. "Antigamente estes povos imaginava-se que existia um ser como este que faria a transição entre o mar e a terra, com barbatanas adaptadas para a locomoção. Imaginaram com tanta intensidade que o desenharam, e era quase isto que está aqui. Foi descoberto pela primeira vez na década de 50, e só agora é que se conseguiu provar que existia mesmo. É a imaginação a anteceder, a superar a natureza."
Saímos para a rua e Mia mostra uma árvore de madeira preciosa. Faz-lhe festas no tronco suave. "É lindíssima, não é? Gosto muito desta árvore. Quando vou para fora e não sei os nomes das árvores, sinto-me totalmente perdido. Elas não falam comigo." Encontra um jardineiro, um velho conhecido. Cumprimentam-se com um ritual de apertos de mão, "à boa maneira africana". "Por aqui os homens podem falar mão na mão, andar abraçados. Aqui o toque é normal, faz parte da comunicação." E é, "à boa maneira africana", com um abraço, que nos despedimos de Mia.
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