O Governo de Moçambique criou, na semana passada, uma suposta Comissão de Inquérito para investigar os relatos das atrocidades cometidas pelas Forças de Defesa e Segurança contra as populações dos distritos de Tsangano e de Moatize, em Tete, e que originaram a vaga de refugiados de guerra para o Malawi. A Comissão não trouxe nada de novo. Excluindo a sua composição, que, em si, denunciava falta de seriedade, a Comissão apenas tratou de oficializar a campanha de má-fé e irresponsabilidade que o Governo vem levando a cabo contra aquelas populações.
Se estamos bem recordados, o “Canal de Moçambique” foi dos primeiros órgãos nacionais a visitar aquele campo de refugiados, e conversou com alguns dos milhares dos moçambicanos que ali se encontram passando fome, frio e retirados o direito de viver em segurança na sua própria terra.
Todos os nossos entrevistados foram unânimes em afirmar que a Frelimo (esse é o termo que usam para apelidar as tropas governamentais) queimou as suas palhotas, violou as suas filhas, assassinou os seus irmãos e pais, e pilhou os seus bens. Todos afirmaram que abandonaram Tete por causa das atrocidades dos “homens da Frelimo”, que os acusavam de colaborar com a Renamo.
Posteriormente foram as organizações humanitárias, em relatórios, que trataram de confirmar e repetir o que o “Canal de Moçambique” já havia constatado e denunciado.
A primeira reacção do Governo foi a de desvalorizar todas aquelas informações e montar um grupo de choque para ridicularizar as declarações das populações e fazer acreditar que aquelas populações eram simpatizantes da Renamo. É como que se tivesse cobertura legal, violar, assassinar e espoliar os simpatizantes da Renamo.
Mais tarde, quando já não se podia esconder a situação, com o número de refugiados a duplicar dos anteriores cinco mil para dez mil, o Governo decidiu tirar da cartola mais um número da sua irresponsabilidade.
Preferiu criar um debate de cunho semântico sobre a nomenclatura a atribuir àquelas populações. Vimos o Governo a desenvolver um debate sobre se aquelas populações podiam ser consideradas refugiados, deslocados, fugitivos, ou membros da Renamo que pretendiam denegrir o nome de Governo de Moçambique no Malawi.
Alheia a todo este festival de irresponsabilidade, a população continua lá a dormir no chão, sem comida e sem qualquer dignidade, porque o Governo está ocupado à procura da designação política mais adequada.
Quando a Human Rights Watch e a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) tornaram conhecida internacionalmente a catástrofe humana de Kapitse, o Governo decidiu criar uma Comissão Inquérito dirigida pelo vice-ministro da Justiça, Assuntos Religiosos e Constitucionais, Joaquim Veríssimo, coadjuvado pelo vice-ministro do Interior, José Coimbra, e da qual fazem parte técnicos da Direcção Nacional dos Direitos Humanos e do Ministério da Administração e Função Pública. Ou seja, o acusado aqui é que foi auto-investigar-se. Ora, isto não difere de que um violador esteja no Tribunal com vestes de juiz para julgar a vítima.
E os resultados não tardaram. Joaquim Veríssimo veio a público dizer que tudo o que a população contou não passa de invenção. Para Joaquim Veríssimo, são onze mil pessoas a inventarem que estão a ser perseguidas. Esta é a constatação da equipa governamental. Assassinatos, violações sexuais, pilhagem, é tudo invenção dos refugiados para denegrir o invejável bom nome do Governo de Moçambique.
Esperar por um resultado diferente deste, numa situação em que o Governo criou uma comissão de investigação à medida dos resultados que queria ouvir, é excesso de fé.
Sejamos sérios. Uma coisa é Filipe Nyusi e seus ministros ignorarem totalmente o calvário que aquelas populações vivem. É um acto que, apesar de irresponsável, compreendemos, porque este particular de se preocupar com o povo só é peculiar de quem, de facto, foi votado e sente-se no dever moral de fazer alguma coisa perante um problema que caminha para níveis de catástrofe. Mas criar uma comissão de inquérito para gozar com a situação em que aquela população se encontra, e tentar passar um certificado de estupidez a todos os moçambicanos e estrangeiros que estiveram em Kapitse, é um acto bárbaro. Pagar ao jornal “Domingo” para inventar narrativas para ilibar o Governo é o cúmulo.
Se se revelam incapazes de fazer parar e de responsabilizar as tropas governamentais pelas atrocidades cometidas e de criar solução para aquele problema, achamos que Filipe Nyusi e “sus muchachos” deviam respeitar o sofrimento daquelas populações e absterem-se de qualquer acção. Investir dinheiro para financiar campanhas de ridicularização do sofrimento daquela população vai muito para além de tudo o que já por si é inaceitável.
(Editorial, Canalmoz/Canal de Moçambique)
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