Monday, 15 February 2016

“A paz não pode ser refém da Constituição”

                









 A Constituição deve servir os interesses superiores de um povo e não de um punhado de pessoas”


Magro, envelhecido e com palavras comedi­das, Afonso Dhlakama ressurgiu a partir do seu burgo, Satungira, onde sempre se es­conde quando se sente ameaça­do. O lugar é de difícil acesso e quem lá chega pela primeira vez, não conhece o caminho de volta
Os jornalistas abandonam as suas viaturas numa mata e fazem dezenas de quilómetros transpor­tados em motorizadas. Quando pensam que já chegaram ao desti­no, há ainda sete quilómetros que vão deixar todos cansados, dado que são feitos a pé. No meio de ár­vores frondosas e que produzem muita sombra, vê-se a “fortaleza” de Afonso Dhlakama: uma casa pequena, construída à base de pau, pique e barro.
O líder da Renamo não era vis­to há quatro meses. Está mais ma­gro, mais calmo, mas não lhe foge a ideia de governar à força as seis províncias onde teve maior nú­mero de votos. Na entrevista que se segue, Dhlakama diz que “ser governador ou administrador não significa ter um espaço físico” e acrescenta que a Frelimo e Filipe Nyusi atropelaram a Constituição, por estarem a governar com base na fraude. O líder da Renamo tem também uma visão simples em re­lação à Constituição: “A paz e esta­bilidade política não podem ficar reféns de um papel escrito pelo próprio homem”. A seguir, as par­tes mais significativas da entrevista com o homem que conduz a Rena­mo desde Outubro de 1977.
 


 
O presidente da Renamo, Afon­so Dhlakama, anunciou que vai governar à força, a partir de Mar­ço, as províncias onde teve maior número de votos nas eleições ge­rais de 2014. Como pensa realizar este objectivo?
Sem dúvida que será a contínua luta pela democracia. Pretende­mos continuar a lutar e comple­tar os objectivos que traçámos em 1977, quando iniciámos a luta pela democracia. Portanto, que fique claro que não vim cá (Satungira) para voltar a pegar em armas. O que eu queria era continuar a man­ter encontros populares em todo o país para explicar e orientar o povo sobre os passos que devem ser dados para uma democracia ge­nuína. Mas, infelizmente, os meus irmãos da Frelimo orientaram as Forças Armadas e de Defesa de Moçambique para me eliminarem fisicamente. Isto não é segredo para ninguém. Aliás, as próprias Forças de Defesa já anunciaram publicamente que foram elas que atacaram as minhas comitivas em Manica e, depois, cercaram a mi­nha residência na Beira, facto que me obrigou a sair da Beira a pé até aqui. Aqui, sinto-me seguro. Vim aqui não para mostrar a minha capacidade de guerrilheiro. Vim aqui para mostrar a capacidade de um líder pacífico, um líder ainda com vontade de negociar. Anun­ciei, de facto, a formação do nosso governo a partir de Março. Talvez me perguntasse… ‘senhor presi­dente, como é que vai governar nas seis províncias se já existem governadores lá?’. Ser governador ou administrador não significa ter um espaço físico, ou seja, não sig­nifica entrarmos no palácio da mi­nha irmã Helena Taipo ou, então, no palácio do governador da Zam­bézia. A democracia não é feita nos gabinetes. Não precisamos de um gabinete de luxo com ar condicio­nado, internet e tudo mais, nem precisamos de cadeiras de luxo. Eu estou a dirigir a Renamo a partir de uma casa feita de palha e paus. Governar significa coordenar to­das as actividades de todos os dis­tritos. Ter em mão todo o poder executivo, ou seja, a população estar do seu lado e lidar com inves­tidores nacionais e estrangeiros. Agora, se os actuais governadores mostrarem resistência à nossa go­vernação ou, então, ordenarem as Forças de Defesa e Segurança para pôr em causa a nossa governação, aí não teremos outra hipótese senão empurrá-los… um bocadi­nho… para fora do palácio e colo­car os nossos governadores nesses palácios. Portanto, a resposta seria essa. É uma resposta satisfatória e de reconciliação nacional.

A decisão de criar um novo Governo, quando já existe um, atropela a Constituição da Repú­blica...
Não, não, não. Mas também a nossa Constituição não diz que um partido pode formar um governo sem que tenha ganho as eleições, tal como a Frelimo fez. Legalmen­te, eu e a Renamo é que estamos no caminho certo, e não estamos a violar a Constituição, pois ganhá­mos as eleições e podemos por di­reito formar um governo, tal como o faremos em Março. Aliás, pelo menos, vamos governar onde os editais confirmam que Dhlakama e a Renamo tiveram a maioria. O presidente Nyusi e a Frelimo estão a governar onde perderam ou, então, onde ganharam através de fraude. Estes é que feriram a Cons­tituição.

A Constituição não diz que quem tem maior número de votos numa província deve, a partir daí, governá-la.
Reconheço. A Constituição não diz isso. Mas também a Constitui­ção não diz que quem roubar votos e usar a Polícia para reprimir os seus opositores é que deve gover­nar. A Constituição também não diz que estes que fazem isso, tal como os meus irmãos da Frelimo, devem ser protegidos. Estamos também a brincar com a Constitui­ção de Moçambique. Mas há uma saída para isso. Podemos fazer uma revisão da nossa Constituição. Podemos convidar constituciona­listas nacionais e estrangeiros para fazerem uma emenda à Constitui­ção. A Constituição deve servir os interesses superiores de um povo e não de um punhado de pessoas. A paz e estabilidade política não podem ficar reféns de um papel escrito pelo próprio homem. Che­ga! Não estamos a dizer que vamos colocar fronteiras no rio Save para dividir o país. Aí sim, estaria a vio­lar a Constituição e a colocar em causa a unidade nacional.


Esta decisão da Renamo signi­fica que o diálogo está definitiva­mente fechado?
Com certeza. Mesmo se você estivesse no meu lugar, depois da­queles ataques que sofri, toda a confiança que tinha depositado no Governo da Frelimo e no Presiden­te Nyusi ruía, pior ainda quando eu soube que os ataques foram pro­tagonizados pelas Forças de Defe­sa e Segurança, que, afinal, são comandadas pela mesma pessoa que diz que quer dialogar comigo. Sinceramente, não atacaram uma base, planificaram a minha morte. Se não morri, é porque Deus está comigo. Então, diga-me lá por que devo acreditar em pessoas que ten­taram matar-me três vezes, quando eu sempre mostrei disponibilidade para dialogar. Concluímos que os nossos irmãos não estão interes­sados no diálogo, então, a partir de agora, vamos ditar as regras. Primeiro, vamos indicar os nossos governadores e só depois vamos negociar, com a questão da minha segurança bem definida e com a mediação da Igreja Católica e do presidente Jacob Zuma, da África do Sul.
Apesar do seu posicionamento, o Presidente da República tem estado a dizer que há contactos e abertura para o diálogo...
Tenho pena. Mas digo que o Presidente da República está a fal­tar a verdade aos moçambicanos. Ðepois da minha saída da Beira, dias depois dele mandar cercar a minha casa, tenho a certeza que ele é que mandou, pois é o Co­mandante-em-Chefe das Forças de Defesa e Segurança que estiveram na minha casa, nunca mais houve contacto entre o Governo e a Re­namo em torno do diálogo. Per­demos confiança nos mediadores. Eles nem sequer se pronunciaram sobre aqueles acontecimentos e de­cidimos recorrer à Igreja Católica e a mediação do presidente da Áfri­ca do Sul. Fomos respondidos posi­tivamente tanto pela igreja, assim como pelo presidente sul-africano. Mas tanto a igreja, assim como o presidente sul-africano, estão à espera que o Governo moçambi­cano manifeste a mesma vontade para nos ajudar. Ainda há dias, vi na STV o Presidente da Repúbli­ca a afirmar que fará tudo ao seu alcance para “puxar o presidente Dhlakama para a cidade”. Puxar? Eu não estou num buraco. Eu es­tou em Moçambique e no meio da população. Se, de facto, há mudan­ça de atitude por parte do Gover­no, nós estamos preparados. Mas, mesmo que haja mudança de atitu­de para melhor, a minha resposta será: só depois de estabelecermos o nosso governo. É este governo que ditará as regras de diálogo. Sei que ele estava a falar em me puxar, depois do encontro que manteve com o ministro britânico para Áfri­ca, um ministro que falou durante 25 minutos comigo pelo telefone. Eu recomendei ao ministro para informar o Presidente da Repúbli­ca que eu quero a paz. Não quero morrer. Acredito que ele não gos­taria que um dia fosse emboscado pelos guerrilheiros da Renamo ao descer de um helicóptero. Não sou terrorista.

O Presidente da República diz que está com dificuldades para dialogar com o seu partido, por falta de organização.
(Risos) Falta de organização? Quando tentaram matar-me não é porque sabiam que eu sou o líder. Temos um secretário-geral que é o número dois. Tenho um gabinete que funciona em Maputo. Temos uma bancada na Assembleia da República. Todos estes órgãos são contactáveis fisicamente e têm hierarquia. Com quem o Governo negociou em Roma? Com quem o Governo negociava no Centro de Conferências Joaquim Chis­sano? É propaganda. A Renamo tem estrutura. Estrutura não sig­nifica apenas Afonso Dhlakama. Para mim, é uma forma de faltar à verdade aos moçambicanos. É uma forma para não justificar os atentados contra a minha pessoa. Fiquei à espera de algum pro­nunciamento do Chefe de Estado sobre os ataques de Setembro e o cerca à minha casa. Nada. Mas os que atacaram foram as Forças Ar­madas e o Presidente da República é o Comandante-em-Chefe. Sendo assim, ele sabia dos planos para me eliminarem. Agora afirma que não temos liderança. Agora estou disposto a tratar de questões do fu­turo do meu país.
Circulam informações dando conta que a Renamo está a trei­nar jovens e a armá-los.
Não. Não estamos a formar jovens. Já houve vários pedidos e todos foram rejei­tados. Os guerrilheiros que vocês viram ao longo da caminhada para aqui onde estamos são todos anti­gos guerrilheiros e é com eles que estamos a colocar novos quartéis nas seis províncias para defender o nosso governo. Não posso es­conder isso. Iniciámos esta acção há pouco tempo. É uma resposta às acções do Governo, que todos os dias envia jovens das Forças de Defesa e Segurança para as regiões onde ganhámos. Eu sei que estes vão tentar criar resistência nas re­giões onde ganhámos e eu, estra­tegicamente, como líder e general, mando só três dos meus guerrilhei­ros para empurrá-los.


Tem estado a dar ordens para os focos de ataques que vêm sen­do reportados em algumas zonas do país e que a Polícia atribuiu à Renamo?
Temos quartéis nas províncias. Em resposta aos ataques que te­mos sofrido nestes quartéis, pro­tagonizados pelas Forças de De­fesa e Segurança, temos saído em defesa, como, por exemplo, o que aconteceu em Chigubo, província de Gaza. Tentaram atacar a nossa base. Foram seguidos pelas nos­sas forças e foram atacados. Em Morrumbala, na Zambézia, está a acontecer o mesmo. Confirmo que os ataques são em resposta aos ata­ques às nossas bases. Temos feito isso em legítima defesa, aliás, a me­lhor defesa é o ataque. Já não será como passado. Mas no dia em que o Governo parar de nos seguir, nós pararemos imediatamente.
Como reage ao atentado contra o secretário-geral da Renamo?
Simples. Tentar calar a boca. Sa­bem que estou em Satungira e ele é o número dois. Quero lembrar que Manuel Bissopo foi baleado quando seguia para o distrito de Marromeu, onde tinha agendado vários encontros políticos com a população. Tentaram matá-lo para nos intimidar. Na Renamo, quan­do um membro é assassinado por razões políticas, ficamos mais uni­dos e mais fortes.
Quero aproveitar apelar aos meus irmãos da Frelimo para pa­rarem imediatamente de raptar e assassinar os nossos membros de base. Aqui em Gorongosa há muitos desmobilizados de guerra e membros da Frelimo. Não nos custa nada ir à casa dos mesmos e eliminá-los fisicamente. Felizmen­te, esta não é prática da Renamo. Somos um partido da Direita e acreditamos em Deus. É pecado para nós. Todo o ser humano tem direito à vida. Sei que há norte-co­reanos a treinar jovens numa base de Matalane, que depois são distri­buídos pelas províncias do Centro, com uma lista dos membros da Re­namo que devem ser abatidos. Es­tão a criar terror no seio dos nossos membros. Parem, por favor.
Quem é que vê na Renamo como seu sucessor?
(Risos) Não sei, não sei. Cabe a cada membro mostrar trabalho suficiente para conquistar simpatia dos membros e chegar à presidên­cia do partido. Não posso indicar ninguém, porque não se trata de poder tradicional. O meu pai, o ré­gulo Mangunde, está a preparar um dos meus irmãos para lhe substituir. Eu fui eleito e o próximo presidente também deverá ser eleito de acordo com os estatutos do partido.Francisco Raiva



( O País )

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