Monday, 20 June 2016

"A responsabilização é indispensável”


O que os donos do dinheiro querem: "A responsabilização é indispensável"



Presidente cessante do Grupo de Parceiros de Apoio Programático e embaixador de Portugal diz que dívidas escondidas é um assunto muito sério
 



Levar à justiça aqueles que endividaram o país, num sensível dossier sobre as dívidas ocultas, tem sido apontado, em meios restritos, como a operação que os donos do dinheiro, nomeadamente, os parceiros de ajuda orçamental a Moçambique, querem impor a contra gosto do partido Frelimo.
Dada a delicadeza do caso, há muita cautela na sua abordagem. Em entrevista ao SAVANA, o Presidente dos Parceiros do Apoio Programático, que esta semana terminou o mandato como embaixador de Portugal, em Moçambique, não fugiu à regra, mas deixou claro que a responsabilização é indispensável, por isso que, os parceiros se batem duro para que haja investigação forense da dívida oculta. "Que aquilo que é para investigar seja investigado e esclarecido e haja consequências, senão fica a sensação de que tudo o que se faz pode não ser consequente", diz José Augusto Duarte, na mesma semana em que o embaixador da União Europeia disse, à saída da Procuradoria- -Geral da República, que só uma investigação forense pode restabelecer a confiança dos parceiros. Duarte falava no mesmo dia em que uma missão do Fundo Monetário Internacional (FMI) chegou a Moçambique para nove dias de intensos encontros com as autoridades de Maputo para perceber os reais contornos da dívida oculta.
Siga a entrevista.


Anunciou, esta semana, o fim da sua missão como embaixador de Portugal em Moçambique. Como é que foram os três anos de mandato? Foram muito intensos.


Houve sempre muito trabalho a fazer, muitos desafios a conquistar, em todas as áreas de trabalho da embaixada de Portugal. Empenhei-me bastante no reforço das relações político-diplomáticas entre Portugal e Mo- çambique. Preparei muitas visitas de autoridades portuguesas a Mo- çambique. Preparei também muitas visitas de autoridades moçambicanas a Portugal.
Preparamos muitas propostas de acordos a assinar entre as autoridades portuguesas e moçambicanas. Apoiei e trabalhei com muitas empresas portuguesas que pretendem fazer investimento ou que estão já em investimentos em Moçambique. Mantive um contacto diário com as autoridades moçambicanas e com empresários portugueses. Esforcei-me o máximo possível para valorizar e promover a cultura e os agentes culturais moçambicanos em Portugal. Empenhamo-nos também na cooperação de ajuda ao desenvolvimento que temos com Moçambique há quase 30 anos, desde a área militar, do ensino, e em todas.
Portanto, foram três anos muito intensos em termos de trabalho, com muitas frentes e muitos desafios. Deixe-me dizer muito concretamente: foi provavelmente o posto da minha vida.

Por falar de desafios, que disse que foram muitos, sai satisfeito ou não?

O meu país faz este ano 873 anos, mas está cheio de desafios por conquistar. Moçambique tem 40 anos, há de ter muitos desafios por conquistar.
Daqui a 100 anos, Moçambique terá muitos desafios por conquistar. O que quero dizer com isso é que construir uma Nação nunca é uma tarefa acabada. Todas as gera- ções têm desafios importantes por conquistar em prol do bem comum. No caso de Moçambique, a geração que conquistou a independência fez um trabalho heróico, que foi lutar para que o país fosse livre e tivesse a sua soberania. Mas o trabalho não está concluído. Essa foi a tarefa daquela geração.
A geração que nasceu no Moçambique independente tem outros desafios pela frente. E a seguir a essa, outras gerações virão e terão outros desafios importantes na construção de um Moçambique cada vez mais livre, mais próspero, com inclusão social e com desenvolvimento social e humano e a bem de todos. Portanto, esses desafios serão uma constante que cada geração deverá dar o seu contributo. É importante que cada geração dê o seu contributo pelo desenvolvimento e consolidação da nação e não ache que o trabalho está concluído pelas gerações que a antecederam.


Depois da EMATUM, este ano fomos todos colhidos de surpresa sobre as chamadas dívidas escondidas. Como é que Portugal, em particular, e o G14 que presidiu, no geral, receberam estas informações?

O G14, Portugal e todos reagiram da mesma forma que os cidadãos moçambicanos e qualquer pessoa de bem.
Nós reagimos com pena. Lamentamos profundamente que a situação das dívidas que não tinham sido totalmente declaradas e não eram conhecidas pelo público moçambicano como também não eram conhecidas pelos doadores, tivessem criado uma situação muito complicada. Isto não é bom para Moçambique, não favorece Mo- çambique, não beneficia Moçambique. Moçambique orgulha-se de ter estado durante muitos anos a lutar para criar muitos amigos no estrangeiro, ganhar prestígio e respeito internacional, e estas dívidas que agora foram declaradas e que não eram ainda do conhecimento público no geral, não são uma boa notícia.
Não são uma boa notícia para o Orçamento do Estado mo- çambicano com as consequências que têm, não são uma boa notícia para a economia moçambicana, não são uma boa notícia para o crescimento de Moçambique. Mas dito isto, não é uma fatalidade, cá estamos presentes, moçambicanos e estrangeiros, para ultrapassar a questão, para ver o que há para fazer, não se pode ficar apenas a lamentar o sucedido. Podemos empreender medidas adequadas para corrigir aquilo que está mal.

Uma situação que era evitável?

Acho que sim e desejável que não tivesse acontecido também.


Um mês depois de assumir a presidência do G14, ano passado, concedeu uma entrevista ao SAVANA, na qual considerava o dossier EMATUM como um assunto, extremamente, delicado. Como é que viu o processo da reestrutura- ção da dívida da EMATUM?

Mantenho que continua a ser um assunto extremamente delicado. Delicado porque é financeiramente pesado, não é uma dívida pequena, tem uma grande dimensão e tem um impacto significativo nas contas do Estado e é delicado também porque acho que compete aos moçambicanos resolver os assuntos internos. Os doadores terão de dizer a sua opinião, mas terão de ser os moçambicanos a fazer as opções que consideram adequadas para ultrapassar os constrangimentos. Portanto, a delicadeza do assunto neste momento não é menor do que há um ano quando dei essa entrevista, provavelmente é igual ou superior.
Se só a EMATUM já era um assunto delicado, agora, com a PROINDICUS e MAM, de que magnitude é este dossier?

É de magnitude suficiente para ter acontecido o que aconteceu. A magnitude que tem é suficiente para ter criado este problema com os doadores internacionais e que levou a que os doadores tivessem decidido suspender a ajuda orçamental. Não acho que seja uma fatalidade, acho que as coisas se podem e devem ser ultrapassadas em benefício dos moçambicanos e das moçambicanas. Para isso é necessá- rio empreender algumas medidas que acho que fazem parte das intenções pelo menos já declaradas pelo Governo moçambicano e que tem feito parte das conversas que temos tido com o Governo. Falta agora é aprovar essas novas regras e implementá-las.

Numa carta de 3 de Maio, ao Governo de Moçambique, diz, em nome do G14, que as dívidas não declaradas remetem ainda para outras áreas que suscitam também preocupação, que incluem o combate à corrupção. Podemo- -nos ater um pouco a isso? Até porque a directora-geral do FMI, instituição de que muitos países membros do G14, incluindo Portugal, fazem parte, apareceu, publicamente, a dizer que, por detrás das dívidas escondidas, há sinais claros de corrupção.
A quem compete fazer essas conclusões é a Procuradoria-Geral da República e as autoridades judiciais e legais moçambicanas, não será certamente o embaixador de Portugal que vai tirar as conclusões de que houve ou não corrupção. Deverá haver uma auditoria e deverá ao mesmo tempo haver essas conclusões e a consequência.



É para haver responsabilização




A comunidade internacional tem insistido muito na questão da auditoria forense e, a ideia que fica, que até pode ser errada, é de que é preciso que haja responsabilização dos arquitectos desta dívida. Gostaríamos que comentasse sobre isso.


Mas é o que faz parte de qualquer acordo internacional, não é nada de novo. Se vocês repararem bem naquilo que era o memorando de entendimento assinado entre os parceiros da ajuda orçamental e o Estado, lá estavam as regras, várias, estabelecidas nos vários artigos, relativamente à probidade na vida pública, a transparência… Ora, se há probidade e transparência, é para haver consequências, é para haver responsabilização.
E, portanto, essas coisas são indispensáveis numa sociedade que pretende progredir, como a consolidação do Estado de Direito e da responsabilização da sociedade. É fundamental para o reforço das próprias instituições. Que aquilo que é para investigar seja investigado e esclarecido e haja consequências, senão fica a sensação de que tudo o que se faz pode não ser consequente. Não pode haver a sensação de que algo foi investigado devidamente e ficou inconsequente. Não é bom para a credibilidade e a força das instituições do Estado face aos seus cidadãos e face aos estrangeiros.
É fundamental esse tipo de coisas acontecerem. Quando falamos na transparência, falamos na responsabilização também, mas isso compete às competentes autoridades moçambicanas fazerem a investigação em prol daquilo que é o reforço da credibilidade e da força das pró- prias instituições do Estado.



Sendo o senhor embaixador uma pessoa que conhece Moçambique e o funcionamento das instituições do Estado, acredita numa auditoria que possa ir até à responsabilização dos potenciais culpados, neste caso concreto?



Eu tenho de acreditar porque se eu não acreditar é um descrédito completo por essas instituições. Nós precisamos também de transmitir confiança às próprias autoridades judiciais, e temos de pressioná-las se for necessário, para que façam essas investigações.

Não acha que 1.4 mil milhões de dólares em dívida não declarada seja um motivo para uma operação do tipo "Lava Jato" no Brasil?


Isso compete aos moçambicanos decidir, não compete a mim. Só os moçambicanos é que vão verificar o que acontece noutros países e o que acontece no seu país. Os moçambicanos é que decidem. O país é soberano.


O embaixador tem sido bastante cauteloso e reitera que as decisões cabem aos moçambicanos. Ora, entre os moçambicanos há uma percepção generalizada de que é preciso que os membros do Governo anterior sejam responsabilizados, obrigados a esclarecer o que terá acontecido.
Como diz que não cabe a si dizer sim ou não, só gostaríamos de ouvir, pelo menos, se acha justa ou não esta exigência dos moçambicanos?


O que eu acho justo é que o assunto tem de ser esclarecido. E aquilo que eu disse e reitero é que é fundamental que Moçambique faça alguma coisa para recuperar essa confiança. Os parceiros foram claros na relação com as autoridades moçambicanas que é necessário investigar e esclarecer a situação. Que Moçambique precisa de esclarecer a situação. Que os moçambicanos precisam de esclarecer a situação para consigo próprios.
Se vão questionar o personagem A ou B, isso compete às autoridades legais decidir. Mas o assunto, assumir claramente perante autoridade internacionais como foi assumido pelas altas autoridades deste país que havia dívidas que não tinham sido declaradas, é uma situação complicada, uma situação muito séria e que merece necessariamente a sua devida correcção. Ela só será corrigida quando for feita a investigação e tiradas as devidas conclusões. Portanto, a investigação terá de ser levada a cabo naturalmente pela autoridades legais moçambicanas.


Não terá, a redução de 19 para 14, dos países membros do Grupo de Parceiros de Apoio programático, a ver com esquemas de corrupção em Moçambique?


Tem a ver com vários factores.

Que incluem a corrupção?

A ajuda orçamental a Moçambique deriva, essencialmente, de um esquema que dura há quase 15 anos. O que acontece é que a realidade internacional vai mudando. Vai mudando nos países que dão apoio ao Orçamento.
Coisas que eram muito populares, há 15 anos, hoje são menos populares, relativamente, às respectivas populações, e portanto, deixam de ser prioridade para as políticas desses mesmos países, mas outros países também surgem como potenciais recipientes de ajuda orçamental e Moçambique concorre com esses também. Na última década, Moçambique cresceu a uma média de 7.5 e, provavelmente, não está numa situação de carência, à partida, e por isso, haverá tendência para redistribuir para outros sítios, ou para não dar o dinheiro da forma como se costumava dar porque as prioridades mudaram. Portanto, há uma série de factores que levaram com que passássemos de 19 a 14 Estados. Dito isto, Moçambique não pode fazer mais nada, sujeitar-se apenas aquilo que são os caprichos da concorrência internacional para arranjar ajuda ou daquilo que são as circunstâncias internas de cada país doador? Eu acho que Moçambique pode fazer muito. Eu acho que pode. Faz parte da ajuda externa de cada Estado, alimentar os amigos, gerar confiança, conquistá-los, convencê-los. Eu acho que há, sim, muito trabalho a desenvolver nesse domínio.
Tensão político-militar
Termina o mandato e deixa um país em guerra. Acha impossível que os moçambicanos vivam a verdadeira reconciliação?

Não, não é impossível, ela depende da vontade dos moçambicanos. Julga que os moçambicanos não têm essa vontade?

Perguntamos isso porque há longos quatro anos que os moçambicanos não conseguem pôr fim a este conflito.


Eu também estava muito contente com os acordos que tinham sido assinados no dia 5 de Setembro de 2014 (para a Cessação das Hostilidades Militares) e que o que faltava era a verdadeira reconciliação. Ora, para haver a reconciliação, tem de haver a construção da con fiança.
E neste momento não há essa confiança entre as partes. Há que construir essa confiança para que depois se passe para essa verdadeira reconciliação. Devo dizer que eu rezo muito e torço muito para que isso aconteça em Moçambique. Moçambique teve 10 anos de guerra colonial, teve 16 anos de guerra interna e chega, os moçambicanos tem de construir outra coisa, tem de saber se relacionar doutra forma. Eu pessoalmente condeno veementemente o recurso à violência para defender pontos de vista. Não pode ser a forma, nunca pode ser a forma de defender um ponto de vista, o recurso à destruição, à morte, para defender pontos de vista, por muito justa que seja a causa, nada justifica a morte de um ser humano. Não é aceitável isso.
Há de haver instâncias legais e constitucionais para dirimir diferenças. Ou mete um processo no Tribunal, ou fala à Assembleia da República ou fala para os órgãos de comunicação social ou tente convencer os outros moçambicanos dos seus próprios argumentos, mas não matando e destruindo. Dito isto, tem de haver inclusão de todos, tem de haver esforço genuíno para que todos façam parte deste país e com que haja uma forma de ultrapassar as questões. Não acho de todo impossível que sejam resolvidos os diferendos que existem, mas exigem certamente uma vontade redobrada para que cheguemos lá.


E como tem visto os esforços das partes em conflito, se é que há esforços, no sentido de pôr fim a esta situação?
Não sei, não tenho acompanhado com a precisão necessária, não posso avaliar. O que é certo é que o que tenho ouvido nas conversas que temos tido sempre com as partes em conflito é que, quer de um lado, quer do outro, há declaração de uma grande vontade de se chegar à paz e de haver um entendimento.
Dito isto, há vontade, mas falta um esforço redobrado para conquistar essa mesma confiança. Eu acho perfeitamente possível e nesse sentido eu saio optimista no sentido de que vai ser possível. Mas também é uma questão de tempo, mais tarde ou mais cedo, as pessoas vão se saturar, têm que acabar com esta situação, não é sustentável indefinidamente. A situação do conflito em Mo- çambique não é sustentável indefinidamente, ninguém aguenta isto e, portanto, os moçambicanos, mais tarde ou mais cedo, terão de chegar às negociações. Seja pela vontade redobrada das partes, seja pela inviabilidade das coisas, eu saio optimista  quanto ao desfecho, apesar de não saber o que vai acontecer

Armando Nhantumbo, Savana . 17-06-2016

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