Terminada a impressão inicial
da divulgação do relatório da Kroll, para alguns de decepção e de confirmação do
que era do domínio público, para outros de indignação e de alguma esperança pelo
trabalho ainda por fazer pela PGR, penso ser oportuno se reflectir sobre como o
país debate e reage em momentos críticos como este.
Falo
particularmente de uma certa tendência, no passado, de estes momentos terem
resultado num rastro macabro. Vou ser mais explícito, se olharmos para as crises
dos últimos 25 anos como a dos finados Bancos Comercial de Moçambique (BCM) e
Austral e a recente crise político-militar, veremos que elas deixaram um registo
de morte de figuras envolvidas ou no debate público, ou no processo de solução
da própria crise. Falo, na ordem dos factos apresentados, do jornalista Carlos
Cardoso, do economista Siba-Siba Macuácua e do professor Gilles Cistac. De
permeio, também temos episódios de intimidação a académicos, como o de assédio
jurídico ao professor Carlos Nuno Castel-Branco, após a crítica ao Governo do
Presidente Guebuza, e as ameaças que sofreu o professor Luís de Brito, após uma
apresentação sobre o primeiro ano do Governo do Presidente Nyusi, cujas palavras
foram interpretadas de forma manipulativa, por pura má fé. E também a politicos,
como Carlos Jeque, que foi raptado e baleado, e João Massango, brutalmente
espancado às vésperas de uma manifestação convocada por alguns partidos da
oposição em maio de 2016. Não vou aqui explicar as razões do rapto e baleamento
que sofri, embora tenha o meu entendimento sobre isso, preferindo deixá-las (por
enquanto) em aberto para a interpretação e juízo de cada um, ainda esperando que
a justiça (se o fizer) esclareça o caso.
Um elemento comum nestes episódios todos, com a exceção do
assassinato de Carlos Cardoso, é a falta de solução dos crimes cometidos, pelo
menos no que concerne aos seus mandantes. Sendo processos que colocam na
berlinda grupos que detêm o poder, e que potencialmente podem abalar as
estruturas sob as quais este poder repousa, é natural que estes actores se
socorram do Estado para garantir que esses crimes não sejam esclarecidos. Já o
disse antes e reitero a inferência que faço desta inoperância do Estado em
esclarecer estes crimes: que se transformou num mecanismo de controlo social
pelo medo, em que os crimes, não esclarecidos, têm por parte da sociedade
diversas interpretações, algumas delas induzidas por campanhas de
contrainformação que fingem esclarecer o móbil do crime, mas mantêm acima de
tudo o medo pelo incerto, o medo por um transpor de uma fronteira do debate
público por alguém definida. E transpor esta fronteira torna-se mais sensível e
crítico em momentos de crise, em momentos em que há riscos de abalo da estrutura
de poder existente.
Esta fronteira do
debate público nem sempre é explícita, mas pode ser inferida de acordo com as
circunstâncias e experiências. Por exemplo, em conversas com colegas de outras
latitudes, soube que no Uganda o espaço para a crítica pública tem um limite:
não falar das Forças de Defesa e Segurança. Transposto este limite, que por
sinal é conhecido por lá, o regime reprime de forma violenta. O conhecimento
deste processo pela sociedade civil funciona como um elemento de autocensura. No
nosso caso, em conversas com uma colega da academia, soube que numa apresentação
académica se referiu à questão da alternância no poder em Moçambique e recebeu
ameaças de morte por dias, supostamente por ter transposto um limite, mesmo num
contexto formalmente multipartidário. Há um ano, no fervor da indignação pelas
dívidas ocultas, ficou claro que falar do direito de manifestação e tentar
exercê-lo era uma fronteira a não se transpor. Transversal a isso tudo, existe
um processo de intimidação que funciona como um mecanismo de “alerta de
incêndio”, que na forma de um “soft power” se traduz em conselhos de “figuras
amigas” sobre a imprudência de se transpor certas fronteiras. E na mesma linha
tem também o “bullying intelectual”, que com o recurso a argumentos de
autoridade (científica) e epistemológicos, nem sempre consistentes, (des)
qualifica, condena e ridiculariza o debate público crítico, quando não favorável
ao governo do dia.
Que limites
transpuseram Carlos Cardoso, Cistac, Siba-Siba Macúacua e outros? Alguns sabemos
outros não. Mas num contexto em que o relatório das dívidas ocultas se tornou
público, com muitos elementos sensíveis, é importante entender essas fronteiras
explícitas, implícitas ou inferidas do debate público, para que a sociedade
saiba se posicionar quanto à elas. Se as aceita ou as transpõe, se mantém as
fronteiras de liberdades como foram informalmente impostas por grupos hostis ao
exercício dos direitos cidadãos e aquém do texto constitucional, ou luta pela
sua expansão, tendo em vista como elas estão definidas na nossa Constituição da
República.
A reconciliação do país e a sua pacificação até aqui foram
definidos como restritos ao debate entre o Governo e a Renamo, tendo o
Presidente Nyusi dito que haverá um tempo, depois deste debate, para se voltar
ao diálogo com as outras forças da sociedade. Há que ter em conta que há um
profundo ressentimento na sociedade pela forma como o interesse público tem sido
tratado e, em certas camadas, pela erosão de liberdades e até repressão. No meu
entender, o processo de reconciliação não deveria adiar o diálogo com esta parte
da sociedade. E este debate não precisa ser em torno de uma mesa, mas sim pela
forma como o Estado e principalmente os seus órgãos, mostram sinais de abertura
e garantia dos direitos consagrados na Constituição, dentre os quais o de
expressão e de manifestação. Um exercício de direitos que não esteja sujeito ao
constante medo pelo castigo.
O espaço e a liberdade para a discussão dos resultados da
auditoria independente às dívidas ocultas na arena pública e como o poder do
dia, formal ou informal, vai encarar este debate, será em si um sinal da
seriedade com que se pretende olhar para o processo de reconciliação e de como o
país e o Estado mudaram a sua forma de abordar os momentos de crise. E, usando o
bordão político do dia, de como se pode dizer que Moçambique está realmente de
volta, e de volta em benefício de quem .
José Macuane, no
CANALMOZ de 28/06/17
No comments:
Post a Comment