– a propósito do artigo “Males que vêm por bem"
Desde o falecimento do líder da oposição, assiste-se a um retorno ao
discurso que deixou marca no período da guerra civil. A nova fase do
discurso cresceu de tom à medida que de vários quadrantes – civis,
eclesiásticos, diplomáticos, partidários e até de círculos do regime –
surgiam vozes e posturas de solidariedade para com o finado e de
reconhecimento pelo compromisso por ele assumido para a consolidação da
paz. Trata-se, no fundo, de uma campanha que pretende retirar à causa da
Renamo a sua razão de ser, minimizar e até negar o que esteve na sua
origem.
Entre os vários textos disseminados através das redes
sociais, o de autoria de um indivíduo conhecido pelas intimas relações
que há muito mantém com o regime no poder, desde a fase Machel – cuja
morte ele considera um mal que veio por bem, pese embora o facto de ter
colaborado com a política militarista do primeiro presidente da
República – à actual. "Males que vêm por bem" é o título do artigo em
referência, já analisado em determinados pontos demonstrativos da
manifesta ignorância do autor e da sua deliberada intenção de deturpar a
história recente do nosso país.
Referindo-se à política dos
Estados Unidos e do Reino Unido em relação à Renamo durante o período da
guerra civil, escreve o autor:
"os jovens que hoje falam destas
coisas sem nenhuma leitura, nem reflexão precisam de se perguntar porque
(sic) um movimento que lutava pela democracia não recebeu apoio de
Reagan e de Thatcher apesar da sua cruzada anti-comunista; precisam de
se perguntar porque (sic) estes dois países preferiam apoiar o governo
marxista de Moçambique, o último até militarmente; propaganda da Frelimo
como dizem os apologistas da Renamo?"
Por outras palavras, se, a nível interno a Renamo não tinha razão de existir, no exterior muito menos.
A política desses dois países em relação a Moçambique foi traçada antes
do surgimento da Renamo, não tendo sofrido alterações de vulto à medida
que este movimento evoluía no terreno. O golpe de «25 de Abril» em
Portugal serviu para os Estados Unidos e o Reino Unido acertarem
posições em relação à África Austral. Durante a vigência do governo de
transição em Moçambique, americanos e ingleses iniciaram diligências,
junto da Frelimo em Dar-es-Salam, visando o estabelecimento de relações
diplomáticas com o futuro Estado moçambicano. Diligências que incluíam o
comprometimento de ambos países para como desenvolvimento económico de
Moçambique.
Agindo em coordenação com a África do Sul, Washington
e Londres forçaram o regime rodesiano a aceitar a transferência de
poderes para um governo representativo da maioria da população, facto
registado em 1976 sem que a Renamo sequer existisse. Quanto à Namíbia, o
governo sul-africano concordou em acelerar o processo conducente à
independência desse território. Era por demais óbvio que quer os Estados
Unidos, quer o Reino Unido, pretendiam servir-se da África do Sul para
estabilizar uma região que desde há muito consideravam como zona de
influência sua, para assim retirar a potências rivais a possibilidade de
tirarem partido de conflitos coloniais e raciais ainda por resolver –
Rodésia e Namíbia, primeiro; apartheid numa fase posterior.
Na
óptica de ingleses e americanos, Moçambique era um país com quem podiam
cooperar, pese embora o facto de o governo da Frelimo ter aparecido de
início com um discurso radical, anti-imperialista, e manifestamente
pró-soviético em matéria de política externa. Na óptica de ambos os
países, factores económicos determinavam a posição a seguir por Londres e
Washington. E quando, em finais de 1976, a Renamo abordou os Estados
Unidos numa tentativa de obter apoios materiais para a luta que
pretendia travar, a resposta americana coincidiu com essa posição:
sabemos perfeitamente que o governo moçambicano segue uma linha radical,
hostil para connosco e para com o bloco capitalista. É um país
economicamente débil e factores económicos levá-lo-ão a rever a política
que segue. Na nossa estimativa, dentro de 10 anos Moçambique estará do
nosso lado.
A rejeição americana dos propósitos da Renamo surge,
pois, logo na fase incipiente do movimento e por razões que se prendiam
unicamente com a política externa americana a longo prazo; uma política
ditada, fundamental e genericamente pelo Departamento de Estado,
independentemente de serem democratas ou republicanos a ocupar a Casa
Branca. Concretamente, a rejeição americana ocorre muito antes da
ascensão ao poder de Reagan nos Estados Unidos, país que esteve sempre
em consonância com o Reino Unido em questões de política externa. No
Reino Unido, é o Foreign Office que prevalece em matéria de política
externa, quer sejam trabalhistas ou conservadores a governar. De referir
que o governo do Partido Conservador dirigido por Thatcher só
ascenderia ao poder em 1979, o que, aliado à tomada de posse de Reagan
em 1981, serve para demonstrar que o autor do texto em referência
assenta numa premissa totalmente errada. (continua)
João Cabrita, no Facebook
João Cabrita, no Facebook
No comments:
Post a Comment