A viúva de Samora Machel e actual presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), Graça Machel, defende que o retorno do conflito militar no país depois de mais de 20 anos do Acordo Geral de Paz (AGP) se deve essencialmente à descontinuidade da cultura de diálogo e da não aceitação de quem pensa diferente de nós, nos últimos dez anos de consulado de Armando Guebuza.
Convidada pelo Instituto de Relações Internacionais (ISRI) para falar da “Vida, pensamento e obra de Samora Machel” no âmbito das comemorações dos 30 anos da criação daquela instituição de ensino superior, Graça Machel trouxe à tona o que considerou de visão do primeiro Presidente de Moçambique na educação, produção, no processo de descentralização do país e acabou desaguando no actual cenário político do país. No dia 19 de Outubro comemora-se o trigésimo aniversário da morte de Samora Machel no trágico acidente de Mbuzini, em 1986. Na sua alocução, esta quarta-feira, Graça Machel disse que apesar das políticas, pensamento e visão de Machel em torno da gestão da coisa pública, produção, ensino e desenvolvimento do país, entre outros, terem sido apresentados nos anos 70 e 80, estas continuam relevantes para a realidade do país. Graça Machel acrescentou que cada presidente tem a sua maneira de fazer as coisas, procurando, contudo, adoptar o seu estilo próprio de liderança, mediante os desafios de momento. Nessa perspectiva, ela sublinhou que não se está a fazer bem quando em cada mandato os antigos titulares são ignorados ou totalmente descartados. Nós somos uma nação e estado novo; muita da nossa memória institucional está connosco e não está escrita. Ao invés de fundir equipas, temos tendência de as afastar por completo e, em certos casos, temos a dura missão de ter de reinventar a roda”, disse. Tomou como exemplo o pensamento de Machel, que considerou que durante muito tempo foi descartado por algumas lideranças, mas que o povo, com destaque para os hapeiros e vendedores dos mercados, tiveram de resgatar através das diferentes gravações que existem na praça e daí voltou a ser uma referência obrigatória quer para os seus contemporâneos quer para as novas gerações. Analisou a liderança de Chissano e disse ter notado que a única descontinuidade que se verificou foi causada pelos desafios que se impuseram naquele momento, que passavam pela transformação do sistema de partido único para o multipartidarismo. “Não se fala de Chissano, mas o seu trabalho como dirigente teve um grande impacto. A transformação do Estado moçambicano do sistema de monopartidário para o multipartidarismo foi obra de Chissano. É interessante que nós não conhecíamos um outro modelo se não fosse o de partido único. Chissano fez um périplo por todas as províncias para consultar o povo que prontamente negava. Mas ganhou coragem suficiente e disse que a realidade já não era a mesma e tínhamos de mudar de sistema. Dito e feito mudou e nos trouxe a paz que durou 20 anos e todos pensávamos que a paz vinha para ficar, mas estamos agora ergulhados num novo conflito”, disse. Acrescentou que, se tivessem persistido os princípios e a maneira dialogante que caracterizou o mandato de Joaquim Chissano, certamente que não estaríamos numa nova guerra. “isto é descontinuidade, ouviram meus filhos”, exclamou. Referiu que a descontinuidade da prática e modelo de governação de Chissano aniquilou a postura de diálogo, de aceitar aquele que pensa diferente de nós e trazê-lo para um espaço no qual se sinta moçambicano. “Quando perdemos essa cultura dialogante as posições recrudesceram e o conflito rebentou e agora a batata quente, bem quente mesmo, passou para as mãos de alguém que é quase da vossa geração”, sublinhou, numa clara alusão à herança ao actual Presidente Filipe Nyusi. Apelou aos académicos para que procurem encontrar novos métodos de pensamento que permitam aos moçambicanos conviverem uns com os outros e se aceitarem mutuamente.
Coragem para negociar
Graça Machel explicou que as primeiras negociações entre o governo e a Renamo datam de 1984, e que foram iniciadas e conduzidas por Samora Machel. Até Outubro desse ano, recorda que estavam todas as condições criadas para a assinatura de um acordo para o fim da guerra, mas que na hora da verdade houve uma mão externa que impossibilitou a viabilização do acordo.Hoje, passam 32 anos mas o conflito continua depois uma paragem de 20 anos, ao que ela apelou à necessidade de se ter coragem na tomada de decisões para fazer o que logo à primeira vista parece impossível. Falou do acordo de Nkomati, que segundo ela gerou controvérsia em alguns sectores, mas que era um imperativo dado que estava em jogo a questão da soberania nacional.Ela considerou esse acordo como tendo sido um acto de coragem, pois, nas suas palavras, foi preciso que o governo moçambicano se convencesse de que não estava em condições de se defender da agressão movida pelo então regime do apartheid na África do Sul. Recordou que na altura, depois da Frelimo ter derrotado o colonialismo português e o regime minoritário branco da Rodésia, se considerava imbatível nas confrontações armadas, mas que ao aperceber-se de que havia um interesse maior que passava pela preservação da soberania nacional e proteger o cidadão era preciso assumir actos de muita coragem e tomar medidas céleres para colocar fim ao conflito. Abordando a actual situação no país, Graça Machel entende que os dirigentes devem usar todos os instrumentos que têm à sua disposição para restaurar a paz, e que esta seja duradoura.Propõe uma reflexão, de modo que os moçambicanos encontrem um espaço para sentar e procurar as similitudes daquilo que os faz iguais e trabalhar para ultrapassar as diferenças. “O nosso desafio é como construir uma paz duradoura para não haver mais conflitos e reconciliarmos como moçambicanos que todos somos”, disse Graça Machel.
Servir o povo
Um dos aspectos marcantes de Samora Machel foi o de ter dito que os “camaradas deveriam ser os primeiros nos sacrifícios e últimos nos ganhos”, uma clara chamada de atenção para servir o povo e não se servir dele. Sobre este ponto, Graça Machel destacou que esta maneira de ser deve constituir a marca dos dirigentes. Disse que Samora priorizou o povo até ao ponto de não se ter preocupado em erguer grandes mansões.“Não estou a dizer que os nossos dirigentes devem viver em casinhas como as de Samora. Isto é apenas um exemplo de onde um dirigente coloca as suas prioridades”, disse.Criticou a cultura de servidores públicos que ignoram as necessidades do povo, concentrando-se apenas em ganhos pessoais, o que resulta no excesso da burocracia e morosidade na tomada de decisões.“Os funcionários públicos não podem complicar os cidadãos e impedi-los de acesso ao que é de direito”.
Povo deve ter espaço
Recordou-se dos tempos em que o povo tinha direito à palavra a todos os níveis da administração pública, incluindo nos locais de trabalho.Exemplificando, ela disse que a planificação começava da base para o topo, oportunidades que nos últimos tempos têm feito muita falta, o que para ela deve ser corrigido com o aprofundamento do processo de descentralização, dado que o modelo vigente denota um grande vazio sobre como as pessoas podem opinar e resolver os seus problemas.“A democracia é uma exigência fundamental para que qualquer um possa falar na primeira pessoa e esse espaço deixou de existir. Temos pessoas que nos representam, mas precisamos de espaço para dizer o que pensamos ou precisamos na aldeia”, disse.
Educação em primeiro lugar
Mesmo em tempos de intensa guerra, a antiga ministra de educação diz que Machel sempre colocou a formação do homem em primeiro lugar. Prova disso, diz que são os diversos pensamentos que foi desenvolvido ao longo do tempo como é o caso: “fazer da escola a base para o povo tomar o poder; estudar, produzir e combater “.Segundo Graça Machel, nesse período a prioridade era o combate ao colonialismo, mas o presidente de então dava primazia aos estudos nos seus discursos, de forma que o povo adquirisse conhecimento científico que era condição primordial para depois se produzir.Apesar de estarmos num período onde os são desafios diferentes, entende a activista, que a base discursiva que privilegiava o conhecimento para espevitar produção continua actual e mostra-se cada vez mais necessário.Isto porque Moçambique é um país de consumidores e não de produtores, o que faz com que importemos mais de 80% do que se consome, sendo que os níveis de pobreza continuam elevadíssimos. Desafiou os académicos a adquirem uma mentalidade revolucionaria no que diz respeito a produção de modo a colocar o país com altos níveis de suficiência alimentar.
Por Argunaldo Nhampossa, Savana
No comments:
Post a Comment