Monday, 9 October 2017

Os cães assassinos que nos assassinam nas nossas ruas


Canal de Opinião por Adelino Timóteo

(Ao Mahamudo Amurane e a todas as actuais e futuras vítimas desta pandilha)

Meu amor, no nosso país os cães soltos matam, e ficamos a olhar-nos. Olhamos para os lados e não vislumbramos nenhum sinal. A dor é pungente, nos entristece, magoa-nos. As lágrimas correm-nos pelo rosto. As feridas sangram. Antes de nos sarar as crostas, os cães soltos que vagueiam as ruas do nosso país voltam à carga. Matam-nos com as suas mãos calosas, de homicidas. Dilaceram os nossos corações. Voltam a cavar a ferida, que sangra inteira, pesarosa. Os cães soltos do nosso país, meu amor, não são os vira-latas, não são os vadios, que vemos nos baldios, esgravatando o lixo, focinhando o sujo, são cães que se alimentam do sangue humano, comem do sangue e da carne humana, da miséria alheia. São cães humanos, meu amor, e têm nas digitais as marcas do horror que semeiam, escondem, no segredo que faz deles clandestinos. Pergunta-se-lhes de quem são? São cães que de vez enquanto alguém os solta da coleira, para esse tipo de barbaridade, amor, esse lustro de luto que tinge o nosso país de sangue da carnificina e da vergonha, porque, meu amor, não foi esse amor que nos ensinaram a cultivar na nossa pátria, mas aquele amor terno, que nos deixa desejosos do outro, que nos faz procurar o outro, não pelo sangue, mas com a ansiedade de uma gula que povoa e enche os lábios desejosos de outros lábios delicados. Vê amor como a lista cresce e já é, de si, inumerável e intangível. A lista dos nossos mortos às mãos desses cães cobardes, que à luz do dia convivem connosco e no lusco-fusco e nos lugares ermos, despovoados, carregam-nos com a sua mortífera Kalash In Kov. E enquanto a lista cresce e os cães vegetam o seio olhamo-nos assustados e medonhamente, tentando ler os sinais, quem será a próxima vítima. Dói, amor, dor inclemente, os mortos às mãos dos cães levam consigo o enigma, porque nos iludem na escuridão. Intuímos, mas não sabemos quem se lhes detém pela trela e os solta a cada instinto de maldade. E o que mais dói na morte não é só o acto em si, mas esse enigma que tanto se silencia e medeia o desaparecimento dos nossos entes, enquanto ele se esconde, para voltar a investir-nos com a sua incomplacência assassina, que nos deixa desamparados e aterrados no chão, onde caíamos ao efeito dos golpes que nos semeiam aos corações, porque crus os golpes, cobardes os canos que nos miram e se lançam sobre nós, que morremos antes de se morrer, iniludivelmente, a cada acto macabro. Não me perguntes amor porquê me tremem os lábios, porquê os tenho secos, pois a morte tornou-se tão banal que convive teatralmente connosco, faz vigília enquanto amamos, enquanto beijamo-nos. A morte amor nos vigia até a intimidade, enquanto amamos no chão limpo, na esteira, nosso país. E desencanta-nos não só a forma em que ela nos tomou a intimidade quotidiana, o convívio, mas a indiferença, a indiferença com que nos vêem a morrer, nesse concurso de ódio e vingança que nos patrulha a cada perímetro da privacidade. (Adelino Timóteo)

CANALMOZ – 09.10.2017, no Moçambique para todos

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