Wednesday, 10 May 2017

Editorial-De que a Renamo está à espera?


Como havíamos previsto na nossa última reflexão, a Assembleia da República aprovou, na passada quinta-feira (30 de Abril), com o voto maioritário da bancada parlamentar da Frelimo, a proposta do Governo da inscrição, na Conta Geral de 2015, das dívidas ilegais contraídas pela “ProIndicus” (622 milhões de dólares) e MAM (535 milhões de dólares). Essas dívidas, que foram contratadas violando a Constituição da República em vigor em Moçambique, já são, assim, dívida pública imputável ao contribuinte, ou seja, ao povo moçambicano. Primeiramente, o Governo também mandou inscrever a dívida da EMATUM (850 milhões de dólares) na Conta Geral do Estado, referente ao exercício económico de 2014. Na sessão de quarta-feira da semana passada, em que os 135 deputados da Frelimo, em clara defesa dos seus chefes que contrataram as dívidas, aprovaram sozinhos a “legalização” da dívida, a bancada parlamentar da Renamo abandonou a sala e não esteve presente na votação, como protesto contra o acto da “legalização da dívida”. Mais tarde, uma hora depois da votação, a bancada parlamentar da Renamo convocou os órgãos de comunicação para informar sobre as razões do seu abandono da sala de sessões. Ivone Soares, chefe da bancada parlamentar da Renamo, explicou que o seu grupo abandonou a sala com razões fundadas nos seguintes termos: “É inaceitável que o Estado assuma essas dívidas ilegais, particulares, onde não houve respeito pela Constituição, na altura em que as mesmas foram contraídas”. Segundo Ivone Soares, as dívidas configuram “crime de burla ao Estado e aos credores internacionais e criam um maior empobrecimento das populações, reduzem a prestação de serviços pelo Estado, criam desconfiança neste Governo, tanto da parte das populações como da parte da comunidade internacional”. A chefe parlamentar da Renamo disse também que essas dívidas “representam um golpe que lança o povo moçambicano para a maior miséria económica e social”. Ainda segundo Ivone Soares, a legalização das dívidas é “improcedente e seria outra ilegalidade à luz da Constituição da República” e do ordenamento jurídico. A Renamo diz que a única saída “é que sejam incriminados os autores da violação da lei”. Até aqui tudo bem. Abandonar a sala e deixar a Frelimo a aprovar sozinha o documento pode até ter sido uma boa jogada política. E uma conferência de imprensa com um discurso corrosivo como o que foi proferido por Ivone Soares até é aceitável e assertivo. Mas o problema é que, sob o ponto de vista do Direito, estas acções são nulas. Podem ter grande capital político, mas as instituições da lei não se movem apenas por acções de simbologia política, mas por efeito da lei. Aonde queremos chegar? À eficácia das acções. Não basta abandonar a sala e depois convocar a imprensa, é preciso fazer funcionar os mecanismos legais que estão à disposição, para que essa indignação tenha eficácia e produza os resultados pretendidos. E temos para nós que há consenso sobre os três resultados práticos que se pretende com toda essa vaga de indignação, designadamente:

(1) que não nos sejam imputadas estas dívidas cuja aplicação desconhecemos em absoluto;
(2) que sejam responsabilizados de forma pedagógica e exemplar os autores morais e materiais;
(3) que o dinheiro seja todo ele devolvido aos cofres do Estado, para seu uso nas necessidades reais deste país.
Estas pretensões não são alcançáveis com o abandono da sala de sessões e muito menos com conferências de imprensa. Este objectivo é alcançável pondo em acção os mecanismos legais existentes na Constituição da República e demais legislação dispersa e correspondente.
A Constituição da República, na alínea c) do n.o 2 do Artigo 245, confere a pelo menos um terço dos deputados da Assembleia da República a possibilidade de poderem solicitar ao Conselho Constitucional a declaração de inconstitucionalidade das leis ou de ilegalidade dos actos normativos dos órgãos do Estado. Os deputados da Renamo são mais de um terço da Assembleia da República.
Já dissecámos aqui suficientemente que todos os actos normativos que constituem o processo das dívidas ocultas estão, em si, enfermados de vícios de inconstitucionalidade.
E os fundamentos jurídico-legais abundam para se abrir um processo de declaração de inconstitucionalidade de todo esse processo.
Na Constituição da República, no Artigo 179, acham-se prescritas as competências da Assembleia da República, e uma delas, a título exclusivo, consiste no seguinte: “Autorizar o Governo, definindo as condições gerais, a contrair ou a conceder empréstimos, a realizar outras operações de crédito, por período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder pelo Estado” [alínea p) do n.o 2].
As Leis Orçamentais de 2013 e 2014 foram sucessivamente violadas, ao contratarem-se tais dívidas acima dos respectivos limites orçamentais.
Além disso, os contratos que validam o empréstimo contraído pela empresa ‘ProIndicus, SA’ estão redigidos apenas em língua inglesa, contrariando-se o disposto no artigo 69 da Lei n.º 14/2014, de 14 de Agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 8/2015, de 6 de Outubro, segundo o qual os documentos emitidos em língua estrangeira, para serem válidos perante a jurisdição administrativa, devem ser traduzidos para a língua oficial do país e autenticados por autoridade competente.
Além de ter violado grosseiramente a Constituição da República no que diz respeito às competências exclusivas da Assembleia da República, o Governo violou-a também quanto às obrigações constitucionais de um outro órgão de soberania, o Tribunal Administrativo, a quem compete controlar a legalidade dos actos administrativos e a fiscalização da legalidade das despesas públicas (n.o 2 do Artigo 228 da Constituição da República).
Portanto, num documento de meia página, e sem qualquer custo de assessoria jurídica, a bancada parlamentar da Renamo pode requerer sem muito esforço ao Conselho Constitucional a Fiscalização Sucessiva da Constitucionalidade e da Legalidade dos Actos através dos quais o Governo da República de Moçambique concedeu avales à contracção de empréstimos às três empresas.
A questão é: conhecendo toda esta possibilidade constitucional que assiste à Renamo para uma acção de indignação muito mais concreta e didáctica, por que é que aquele partido, até hoje, não acciona esse mecanismo? Qual é o impedimento que a Renamo tem de accionar o Conselho Constitucional? A Renamo não precisa de duas mil assinaturas tal como as organizações não-governamentais. A Renamo só precisa de uma folha de tamanho A4 e de uma esferográfica. E, se houver limitações de Direito, pode usar as partes relevantes deste Editorial para o efeito de lavra do requerimento.
É muito estranha a posição da Renamo em relação a esta questão.

Se a Renamo não recorre ao Conselho Constitucional, é sinal de que há um compromisso grave que impede aquela organização de actuar de forma responsável neste assunto. Mas tudo isto tem um cunho meramente especulativo, e esperamos sinceramente que a Renamo explique aos moçambicanos de que está à espera? Talvez as tais conversas ao telefone e os famosos consensos alcançados estabeleçam que a Renamo não recorra ao Conselho Constitucional e não toque na questão das dívidas, em termos de declaração da sua inconstitucionalidade, que pode resvalar para a declaração de nulidade de todo esse expediente de dívidas. A ver vamos.



(Canal de Moçambique / Canalmoz), no Moçambique para todos

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