Saturday 5 June 2010

O país do arco-íris precisa da bola para juntar as cores que tem


No resto do mundo, a sexta é dia de vestir à vontade. Na África do Sul, as sextas-feiras são reservadas para dizer: "Sou sul-africano". Pronuncia-se com o amarelo da camisola dos Bafana Bafana.

O cais da Cidade do Cabo, o Waterfront, é um lugar do primeiríssimo mundo. Ao fundo, um cenário só comparável aos morros do Rio de Janeiro: a Montanha da Mesa cobre-se com uma toalha de nuvens e vai-se deixando destapar ao longo do dia até mostrar o tampo direito do seu cimo. As montras, que expõem madeiras que cheiram a sândalo e ovos de avestruz esquisitamente trabalhados, confinam com docas secas onde berbequins fazem chispar cascos de navio. Num palco ao ar livre, o Cape Town Tango Ensemble, com um búlgaro no bandonéon, toca Por Una Cabeza de Carlos Gardel para um hemiciclo de loiros e negros, indianos e coloureds, mestiços trinetos de mestiços... Música porteña, certa porque estamos num cruzamento do mundo.

Habitualmente as esquinas do Waterfront povoam-se com pequenas bandas de jazz, ou grupos de Iscathamiya, coros de zulus vindos do Norte, dançando de luvas e sapatos de pala branca, como nos anos 30. Mas, por estes dias, as artes, tirando aquele tango, são outras. Um rapaz, com as cores verde e amarela dos Bafana Bafana, dá intermináveis e difíceis toques numa bola. Um grupo, à volta de uma bola no empedrado e também com a camisola da selecção sul-africana, ensaia passos de diski dance, inventados todos a partir dos movimentos do futebol.

As bolas são da FIFA, as oficiais para este campeonato do Mundo. Têm nome próprio, Jabulani, que em zulu, a língua do povo mais numeroso do país, quer dizer "celebrar". E têm onze cores, cada uma lembrando as onze línguas oficiais da África do Sul. Essa é a bola oficial até ao desafio final, a 11 de Julho. Mas, nesse dia, a bola vai mudar de nome, chamar-se Jo'bulani, de Jo', o diminutivo de Joanesburgo, onde os zulus são minoritários - e, nessa final, no Soccer City Stadium, a bola vai ser toda dourada, em homenagem à Cidade do Ouro, o cognome preferido da maior cidade sul-africana. Neste mosaico de cores e compromissos, acontecidos no futebol, mas políticos, está a África do Sul escarrapachada. O mundo concentrado no fundo de um continente. Um mundo instável mas com uma vontade comovedora de se resolver.

Para explicar esse mundo, nada melhor do que o futebol e, para o fazer, podemos começar por virar as costas à bela Montanha da Mesa. Virados assim, do Waterfront vê-se o mar, que ainda é o Oceano Atlântico. À vista, a Robben Island, uma ilha que se alcança num pequeno e velho 'ferry' azul, que ontem levava prisioneiros e hoje, turistas, chamado "Dias". De Bartolomeu Dias, o navegar português, o primeiro não africano que passou por aqui (1488), dobrou o Cabo da Boa Esperança, 50 quilómetros a Sul, e passou o Cabo Agulhas, o extremo Sul de África, já banhado pelo Oceano Índico. Mas, para o futebol, o que interessa é a Robben Island.

A 15 de Maio de 2004, um velho e belo homem, alto, com a elegância que a balalaica de seda com flores e listas mais acentuava, falou para 24 homens de cinzento, do comité executivo da FIFA, em Zurique. Disse-lhes: "Deixem-me ser nostálgico..." E Nelson Mandela contou-lhes que anos antes vivera numa pequena ilha fria, Robben Island. Foi sua prisão entre 1964 e 1982, desde que foi condenado à perpétua até que foi transferido para o continente. E nessa prisão, lugar de conseguimentos pequenos - não ser obrigado a chamar 'baas', mestre, aos guardas, e de ter direito a calças, como os presos indianos e mestiços, e não calções, por ser negro -, nessa prisão, só se lembra dos seus camaradas sorrirem quando jogavam futebol. Via da janela estreita, de 30 centímetros, que dava para o pátio principal.

E das notícias que vinham de fora, nenhumas eram tão animadoras como o sucesso dos clubes do Soweto (subúrbio de Joanesburgo), o Orlando Pirates e o Kaizer Chiefs: "Em Robben Island, a única alegria dos prisioneiros foi-lhes dada pelo futebol", disse Mandela. Esse discurso, diz a lenda, valeu à África do Sul ter sido escolhida para organizadora do Mundial de 2010,o primeiro país africano a consegui-lo. E, hoje, de Robben Island, retiro de focas e destino turístico para ver o museu-prisão, quem olha a cidade vê um ninho imenso, o novo Cape Town Stadium, onde Portugal repetirá, a 21 de Junho, o encontro que teve com a Coreia do Norte em 1966.

Em Março passado, o maior diário da cidade, o Cape Argus, colou cartazes pela Cidade do Cabo: "Vasco é o orgulho da cidade!" O Vasco da Gama, com a camisola com a cruz de Cristo ao peito da equipa brasileira e clube de alma portuguesa, acabava de subir à divisão principal sul-africana, a Premier Soccer League (PSL). "Mas em Agosto, quando o campeonato começar, duvido que joguemos no Cape Town Stadium", diz Avelino de Oliveira, um dos directores do Vasco da Gama. "Eles cobram 50 mil rands por jogo [5 mil euros], e com assistências de 5 a 6 mil pessoas, a 20 rands o bilhete, metade ia para a renda..."

Cada clube tem como que um núcleo duro étnico - a Cidade do Cabo tem mais dois clubes na PSL, o Santos, que é islâmico, e o Ajax, ligado ao clube holandês - mas depois a equipa é o mundo à volta. "O guarda-redes do Ajax é o meu primo André, e no Vasco a maioria dos jogadores são coloureds", diz Oliveira, madeirense de Câmara de Lobos, de 42 anos. Miúdo, ele veio ter com os pais a este destino ilhéu: os paquetes Santa Maria e Infante D. Henrique, quando atracavam no Cabo, a caminho de Lourenço Marques (hoje, Maputo), punham oficiais no portaló para não deixar desembarcar os madeirenses. Os metropolitanos visitavam a cidade e regressavam ao navio, mas os madeirenses era certo que ficavam ilegais na África do Sul.

Dos 29 proprietários do Vasco da Gama, 28 são portugueses e o outro é coloured. A força do clube é ser de um bairro, Parow, no Norte da cidade, e ser reconhecido por isso: nos seus sete campos de treino sucedem-se as 'clinics', onde os jovens dos subúrbios vêm testar a habilidade no futebol. O Cabo Ocidental, cuja capital é a Cidade do Cabo, é a única província onde os negros (30%) não são maioritários: os coloureds (mestiços) são cerca de metade da população e os brancos são perto 18%, o dobro do resto do país. É também a única província que não é governada pelo ANC - uma branca, Helen Zille, da Democratic Alliance, é primeira-ministra.

Uma sondagem feita em Abril pelo jornal Sunday Times punha o Cabo, entre as cidades que vão acolher os jogos, como a de mais gente desinteressada pelo Mundial: 25%. O inquérito nacional também mostrava a separação de interesses dos negros e os indianos, por um lado, e dos brancos e coloureds, por outro. Cerca de 44% dos negros gostaria de ir a um jogo, contra 20% dos brancos.

A aposta oficial no futebol deve ser vista como mais uma prova da forte, embora recente, tradição do país de ter uma política voluntarista de identidade nacional. Frederik De Klerk, que foi o último Presidente do apartheid, e Nelson Mandela protagonizaram essa política e ganharam, por isso, o Nobel da Paz em 1993 - no Waterfront estão ambos no conjunto de quatro estátuas dos sul-africanos que o ganharam, com Albert Lutuli (1960) e Desmond Tutu (1983).

Nessa esteira, Helen Zille, que foi mayor da Cidade do Cabo, antes de presidir ao governo da província, tem-se mostrada adepta feroz do futebol. O antigo estádio de 18 mil espectadores foi demolido, para dar lugar ao novo, de 70 mil lugares... que só teve 20 mil espectadores no jogo inaugural, o derby local Ajax-Santos. Veja-se, nessa cedência dos brancos (que preferem o râguebi e o cricket), a paga do gesto de Nelson Mandela, agora ainda mais célebre com o filme Invictus. Poucos meses depois de se tornar Presidente, nas primeiras eleições com os negros a votar, Mandela foi à final da Taça do Mundo de râguebi, vestindo a camisola dos Springboks, da equipa sul-africana só de brancos com a excepção do ponta Chester Williams.

Matthew Booth não tem a opinião comum dos brancos, até porque é parte interessada: ele é o grandalhão careca (1,98m) que se destaca na defesa dos Bafana Bafana: "É natural todo o apoio que agora se dá ao futebol e à construção do estádios: no tempo do apartheid o râguebi e o cricket eram desportos subsidiados, o futebol, não." Booth nasceu nos arredores da Cidade do Cabo, em Fish Hoek, um porto pesqueiro, mas vive em Joanesburgo, com um negra, Sonia, natural do Soweto. O defesa branco dos Bafana Bafana é tão pouco comum que dá aso a confusões. No ano passado, na Taça das Confederações, onde a África do Sul se treinou para organizar o Mundial e as vuvuzelas, as ensurdecedoras cornetas de plástico, fizeram a sua apresentação ao mundo, alguns jornais internacionais lamentaram a atitude das bancadas, quase só de negros, que gritavam "Buuuuu!", quando o defesa branco da selecção da casa pegava na bola. "Racismo!", decretaram os jornalistas. Mas era só ignorância, o que os adeptos faziam era saudar um dos seus jogadores preferidos, Booth, com um grito de guerra adaptado do seu nome e que soava a insulto.

Mas, na verdade, há uma espécie de complexo de colonizado no futebol sul-africano. A revista Soccer Week publica com mais destaque a tabela da Premier League inglesa do que a da PSL sul-africana. E coloca a listas dos marcadores ingleses - Rooney (Man United), 34 golos, Drogba (Chelsea), 31... - acima dos sul-africanos: Mphela (Sundowns), 17; Olomu (Bloem Celtic), 13... A Original Insight Learning, uma empresa de pesquisa que recentemente estudou a comunidade coloured do Cabo Ocidental, concluiu que as equipas inglesas exercem maior fascínio que as locais: "Em todas as casas há objectos e imagens de clubes ingleses". O mesmo diz Paulo Neves, que jogou no Celta de Vigo e é irmão do treinador do Vasco da Gama, Carlos Neves: "Há demasiados jogos internacionais na televisão. Colonialismo inglês..."

Paulo dizia isso, enquanto levava o jornalista a visitar o museu privado do seu amigo Tony Andrade, o barman do Vasco da Gama. Tony, de 58, anos é de Paul do Mar, na Calheta, Madeira, e veio em 1958 com a mãe e cinco irmãos juntar-se ao pai. Na vivenda modesta do bairro de Parow, numa sala cheia de Cristos, em quadros e estatuetas, a sua irmã Placência Andrade, de 70 anos, fazia queijadas e bolos de chocolate para vender para fora. O lugar do culto de Tony é na garagem, recortes, camisolas, galhardetes, quase monotemáticos, à volta do mesmo clube. Na carteira de Tony Andrade, a cartão de sócio do Manchester United, num dedo, o anel de ouro do Manchester. Fotos ao lado de Alex Ferguson, de Bobby Charlton, de George Best... Cantona com o braço nos ombros dele. Tony é do tempo em que um fã sul-africano tinha de voar sobre continentes para ir ter com o futebol, agora, o futebol vem ter com ele. No dia 18, Rooney (Inglaterra-Argélia) vem visitar Tony Andrade.


Ferreira Fernandes, Diário de Notícias (Portugal)

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