“iSimangaliso” ou simplesmente milagroso, é o nome tradicional de uma pequena cidade sul-africana que leva o selo de “Património Mundial da Humanidade”, desde 1999, e foi baptizada, pelos boers, como sendo Santa Lúcia, na província de Kwazulu Natal. Trata-se de uma cidadela adstrita a um parque com uma área de 332 mil hectares, oito ecossistemas interligados, dunas costeiras, cinco espécies de tartarugas, com tipos de borboletas, mais de duas mil espécies de plantas e mais de metade das espécies de aves da África do Sul, conjunto este que faz de “iSimangaliso” uma grande atracção turística.
Terá sido por isso que este local foi escolhido como ponto de convergência de culturas, hábitos e costumes de cerca de 200 turistas, de entre governantes, empresários e jornalistas de Moçambique, África do Sul e Suazilândia, legitimando a iniciativa de transformação dos três países vizinhos num único destino turístico ao nível da região austral de África.
O projecto é também uma oportunidade para os três países juntos buscarem investimentos para o desenvolvimento de infra-estruturas de turismo, este que é considerado ouro inesgotável para os subscritores da iniciativa.
A caravana moçambicana, numa coluna de cerca de uma dezena de viaturas, desembarcou, naquela cidadela, a meio da noite. Todo o mundo estava fatigado, ao fim de cerca de 400 quilómetros de estrada, com algumas e curtas paragens para esticar os pés.
À entrada, iSimangaliso estava mergulhada num silêncio absoluto e devidamente decorado para receber os visitantes. Todos os serviços, incluindo de restauração e lazer, estavam encerrados e as pessoas deviam estar já no sétimo sono. Por um lado, devido ao adiantado da hora e, por outro, porque era domingo, alguns terão recolhido cedo aos aposentos.
Todos só queriam banho, jantar e aquecer a cama, recuperando as energias para encarar o dia seguinte com tranquilidade.
Os elementos da organização, esses, lá estavam à espera dos moçambicanos. Depois dos procedimentos administrativos, cada um estava no seu quarto, onde, entre várias coisas, estava lá a refeição, servida em embalagens isotérmicas, próprias para “take away”, iguais para todos: pedaços de carne assada, frango e vorse, acompanhados de xima e salada. Fiquei animado, pois já não sonhava com o jantar, dado que tudo se encontrava fechado. A fome que sentia era de devorar uma cabeça.
Toda a história do périplo turístico por África do Sul, Moçambique e Swazilândia começa no dia seguinte, com a chegada do grupo de sul-africanos, idos de Kwazulu Natal, e não só, e da delegação suâzi, no fim da manhã.
A excursão prometia. Os números anunciados nas vésperas pelos organizadores criavam muito “apetite” a quem gostasse de aventuras pelo mundo selvagem e de turismo: 200 turistas a viajarem numa fila de 50 viaturas com tracção a quatro rodas.
Os sul-africanos mostraram-nos o que têm do melhor em iSimangaliso, desde o nível de organização do evento propriamente dito, ao programa de recreação de fazer inveja. Um colega de profissão perguntava se nós estávamos em condições de retribuir aquilo tudo quando chegasse a nossa vez de receber a caravana na Ponta de Ouro. Ninguém lhe respondeu.
Percorremos o parque e vimos animais selvagens como zebras, javalis, rinocerontes e muitos outros que habitualmente os vemos em livros ou revistas de turismo, e fomos a um parque de campismo onde os ministros do Turismo da África do Sul e Suazilândia e o inspector-geral do Ministério do Turismo de Moçambique montaram tendas de campanha e fizeram fogueira com lenha, símbolo do que é possível fazer naquele local.
O referido parque de campismo é exemplo do respeito e preservação do meio ambiente. As infra-estruturas existentes no local, nomeadamente sanitários e outros edifícios, estão cercados de floresta, com zonas preparadas para o parqueamento de viaturas, montagem de tendas e piquenique.
SITUAÇÃO EM MOÇAMBIQUE
No terceiro dia da excursão, era a vez de Moçambique receber a caravana. Às 8:30 horas, deixamos Santa Lúcia ou simplesmente iSimangaliso, em direcção à Ponta de Ouro, debaixo de uma chuva miúda.
Pouco antes de chegarmos à fronteira, o que aconteceu por volta das 13:00 horas, uma voz feminina anunciava, no interior do autocarro em que eu viajava, que todos nós teríamos de abandonar os luxuosos machimbombos e entrarmos em viaturas com tracção a quatro rodas que nos levariam ao destino final: a vila da Ponta de Ouro.
A caravana viajava a bordo de quatro autocarros de luxo, próprios para turistas, e de cerca de uma dezena de viaturas ligeiras transportando governantes e empresários do sector de turismo dos três países.
Depois dos procedimentos fronteiriços nos dois lados, sul-africano e moçambicano, tudo facilitado, estavam perfiladas, à saída, perto de duas dezenas de “minibuses”, de cor branca, sem ocupantes, muitos deles já cansados e a reclamarem o abate.
Os condutores, com ares de chapeiros, agitaram-se com a nossa chegada. Não era caso para menos. Tratava-se de cerca de 200 turistas.
Dardejei o olhar e não achei nenhum carro com características que se parecessem com as de viaturas com tracção a quatro rodas.
Fiquei preocupado. Cheirava-me a um atraso dos condutores dessas viaturas. Para a minha surpresa, disseram-me que, afinal, os tais 4x4 eram aqueles chapas.
“Já estamos em Moçambique”, dizia um colega da Televisão de Moçambique (TVM), olhando para o tipo e o estado de viaturas alugadas pela “organização” para o transporte da caravana, contrastando com o luxo oferecido pelos sul-africanos.
Algumas das viaturas que nos esperavam não tinham sequer cadeiras completas. Noutras, os assentos estavam soltos ou desapertados e sem a mínima comodidade para os passageiros. Não havia escolha, era o que oferecia a empresa sul-africana contratada pelo Governo da província de Kwazulu Natal, que pagava tudo, para garantir a logística da excursão.
O motorista do minibus para o qual fui encaminhado, com a música a um volume ensurdecedor, um jovem forte, todo entusiasmado, arrancou primeiro, a seguir a uma dezena de viaturas que levavam os ministros do Turismo da África do Sul e Suazilândia, o inspector-geral de Turismo de Moçambique e alguns empresários dos três países do ramo turístico, numa coluna de perto de vinte carros.
Empreendedor, com três chapas a operarem na rota Maputo-Ponta de Ouro e vice-versa, foi-nos contando que no troço fronteira/Ponta de Ouro, com cerca de sete quilómetros, não circulavam transportes colectivos de passageiros e que as pessoas se desenrascam, apanhando boleias para chegarem à vila da Ponta de Ouro.
VIAGEM AOS SOLAVANCOS
Disse-nos que eles todos haviam sido desviados de outras rotas, atraídos pela oferta. A organização pagava por dois dias de serviço quatro mil rands a cada transportador, o equivalente a cerca de 14 mil meticais, valor que precisariam de fazer muitas viagens Maputo-Ponta de Ouro e vice-versa para completar.
A viagem, que à partida parecia curta, estava a ser muito demorada, para o que contribuía o estado precário da rodovia e de conservação das próprias viaturas.
Uma cidadã sul-africana, funcionária do Departamento de Turismo no município de Durban, integrada na caravana, simpática, com um corpo avantajado, à moda dos sul-africanos, confessou que não viajava num carro daqueles há cerca de 25 anos e que só o fez quando frequentava o ensino primário.
Da fronteira para a vila turística da Ponta de Ouro, que mais se confunde com o território sul-africano do que propriamente moçambicano, devido à predominância de cidadãos sul-africanos e da quantidade de coisas sob sua gestão, não há uma estrada formal.
Face a essa situação, cada automobilista tenta descobrir o melhor caminho possível, entre várias picadas arenosas que de longe formam uma teia de aranha.
Numa viagem aos solavancos, em que, vezes sem conta, as nossas cabeças chocavam contra o tejadilho, algumas viaturas, em particular dos visitantes, não aguentavam com a barra e atolavam.
Os minibuses, esses, de 15 lugares, semelhantes aos que asseguram o serviço semi-colectivo de passageiros na cidade de Maputo, andavam sem histórias, a provar que, na verdade, são carros com tracção a quatro rodas.
Alguns dos nossos colegas sul-africanos que pisavam pela primeira vez o território moçambicano, olhando para esta realidade, não resistiram a julgar-nos, dizendo que “afinal o tal Maputo é isto?”. Eles estavam a visualizar uma cidade de Maputo sem estradas alcatroadas e de difícil acesso.
Tivemos que lhes dizer que Maputo cidade não era nada do que estavam a ver, que há prédios altos, estradas asfaltadas, muitas estâncias turísticas que oferecem serviços com padrões internacionais, para além de praias e outras coisas.
Em jeito de conclusão, um colega moçambicano, do jornal “Domingo”, disse-lhes que poderiam vir a Maputo de bicicleta, se assim o quisessem, desfrutando das excelentes condições que oferecem a EN2, que liga Maputo e Suazilândia, e a EN4, ou seja, a auto-estrada Maputo-Witbank, na África do Sul.
Os que não tiveram a coragem de nos abordar terão transportado para as suas origens uma imagem completamente distorcida daquilo que é, na verdade, a cidade de Maputo.
Passava cerca de uma hora de viagem quando finalmente chegamos ao complexo, que era o epicentro da “Operação Moçambique”. Era hora do almoço, mas tinha que se cumprir com o programa: estavam previstos discursos da praxe dos ministros do Turismo de Moçambique, África do Sul e Suazilândia e antes, das autoridades administrativas locais, dentro de uma pobre tenda, montada nos jardins dum complexo sob gestão de um empresário sul-africano.
COMIDA A CONTA-GOTAS
Poucos prestavam atenção ao que se dizia. A fome estava a apertar. A roda girou, o ciclo dos discursos completou-se e o momento mais esperado chegou: o anúncio, pelo mestre de cerimónia, ao microfone, de que o almoço estava servido.
Num lapso, lá estava uma fila enorme ante um buffet, o único organizado pelo restaurante sul-africano, cujo menu nada tinha a ver com a gastronomia moçambicana. Não estavam na mesa pratos como mathapa com caranguejo, nhangana, cacana e outros que fazem a diferença.
Um oficial do Ministério do Turismo de Moçambique contou-nos que havia sido sugerido à empresa sul-africana seleccionada pelo Governo da província de Kwazulu Natal para integrar na expedição um restaurante moçambicano, para salvaguardar este aspecto, mas a opção deles foi por um sul-africano.
Afinal, a casa não estava organizada para servir refeições a cerca de 200 turistas. Em tão pouco tempo, os que estavam à frente limparam tudo e a fila, essa, ainda era longa.
As pessoas foram passeando com os pratos na mão à espera da comida que era servida a conta-gotas. Quando apareciam pedaços de frango, era uma guerra e acabavam logo a seguir. Alguns tinham arroz no prato e faltava o caril.
Fiquei envergonhado com o que estava a ver, mas alguém disse para que eu relaxasse, alegando que a responsabilidade por aquilo era dos sul-africanos que não quiseram colaborar com a parte moçambicana. Era verdade, mas estávamos a apanhar por tabela, porque isso acontecia em território moçambicano.
Os visitantes partiram no dia seguinte para a Suazilândia, no prosseguimento da excursão, e cá entre nós ficou a promessa das autoridades locais, após uma auto-avaliação, no sentido de tudo fazer na próxima expedição turística a três, prevista para Outubro deste ano, com recursos próprios, para que se deixe uma boa imagem de Moçambique, de um país com uma grande capacidade de organização e hospitalidade e com bons serviços de catering e muitas alternativas de alojamento. Até lá.
*Da revista Prestígio
Diário de Moçambique