Nesta entrevista exclusiva ao nosso jornal, Hermínio Morais fala da partidarização dentro das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, dos problemas dentro da Renamo, do futuro do partido e de muito mais.
Chama-se Hermínio Morais ou simplesmente Bob Shalton, sua alcunha nos tempos da guerra que a Renamo moveu contra o governo da Frelimo. Shalton foi o arquitecto das acções de sabotagem ao longo do corredor da Beira, que culminaram com o espectacular assalto a um comboio com 46 vagões contendo armamento.
Sr. general, é membro sénior da Renamo e certamente acompanha com alguma intensidade a vida do partido. Na sua óptica, a Renamo está bem de saúde?
A Renamo, na minha óptica, está bem de saúde, apesar de todas as dificuldades inerentes à actividade política na oposição em Moçambique. Estamos, neste momento, a constituir brigadas a nível de todo o país, por forma a nos organizarmos para as eleições gerais.
Tendo a Renamo perdido em toda a linha as últimas eleições autárquicas, continua a achar que o partido está bem de saúde?
Sim...realmente, reconheço que é preciso fazermos um trabalho mais a sério. Muitas vezes, nos iludimos pensando, logo à partida, que já ganhámos e o resultado foi este que vimos. Mas a derrota da Renamo não pode ser vista como fruto da alegada desorganização dentro do partido. A Frelimo mobilizou todos os meios ao seu dispor para estas eleições, com especial enfoque para os bens do Estado. Nós da oposição não tínhamos nada a fazer face à Frelimo.
Logo após o "desaire" eleitoral de 19 de Novembro, vários membros seniores da Renamo vieram a público exigir a realização de um congresso extraordinário que teria como objectivo fazer uma reflexão interna e quiçá, sufragar uma nova liderança. De que lado está?
Respeito a opinião destes colegas, mas não concordo com a sua posição. A Renamo não precisa de nenhuma revolução profunda. Concordo que a Renamo deve, urgentemente, adaptar-se à actual conjuntura política do país e abrir-se mais para o diálogo construtivo.
Quando fala em adaptar-se à actual conjuntura, está a pretender dizer que o partido e o seu líder estão ultrapassados?
Não. O que vejo é que muitos membros da Renamo, que entraram depois dos acordos de paz, estão lá para tirar dividendos e não contribuem em nada para o partido. É preciso que as pessoas percebam que a Renamo não é nenhum posto de trabalho para acomodar interesses de pessoas preguiçosas.
Mas sente que existem condições para o diálogo dentro do partido, tendo em conta que a Renamo está centrada no seu líder Afonso Dhlakama?
A Renamo não está centrada no seu líder como alguns pretendem fazer crer. A Renamo está centrada nos milhões dos seus membros. Dentro da Renamo, existe espaço para o diálogo e para livre expressão.
Dhlakama está há mais de 30 anos a frente da Renamo. Há quem defenda a sua reforma. Acha que Dhlakama ainda tem legitimidade para se manter na liderança da Renamo?
Creio que ainda tem capacidade e legitimidade. A Renamo não é dirigida apenas pelo presidente Dhlakama. Existem outros dirigentes e membros que são importantes na Renamo.
Raul Domingos veio a público mostrar a sua disponibilidade para voltar à Renamo, mas sob algumas condições que não chegou a especificar. Estaria preparado para receber o seu antigo chefe do Estado Maior no tempo da guerilha?
Quem decide o retorno dos membros afastados é o Congresso. Se os membros acharem que o bom filho deve voltar à casa, acho que é bem vindo.
Para além de Raul Domingos, Daviz Simango é outro membro expulso, que várias vozes dentro do partido defendem o seu retorno e eventualmente concorrer à presidência do partido. A ala militar da Renamo, na qual o general Morais faz parte, estaria disponível para aceitá-lo como líder?
Eu não tenho nenhuma opinião formada sobre este assunto.
A Renamo anunciou para este ano a realização do seu Congresso. Certamente, Afonso Dhlakama será candidato à presidente do partido. Vai apoiá-lo?
Sim, vou apoiá-lo. Não vejo nenhum outro candidato credível para levar a Renamo à frente.
Mesmo com estas derrotas?
Sim. Dhlakama é carismático e querido pelo povo. O importante é trabalharmos seriamente para a vitória. Dhlakama não pode vencer sozinho. É preciso sermos vigilantes contra a fraude.
Como é que a Renamo pode vencer a Frelimo se, nestas eleições autárquicas, o seu presidente nem se dignou a fazer campanha eleitoral pelos seus candidatos. É este líder que apoia?
O que lhe posso dizer é que todos os membros da Renamo se devem empenhar nestas eleições. A vitória é possível com Afonso Dhlakama.
O general Morais apoia o presidente Dhlakama por convicções políticas ou por ter sido seu camarada de trincheira?
Apoio-o por ser o único líder com qualidades para liderar o nosso partido para a vitória. Não existe alternativa dentro da Renamo. A única Alternativa é Dhlakama.
Mas não é Dhlakama que cria condições para que não haja alternativas internas?
Não. O que acontece é que as pessoas ainda não estão preparadas para suceder a um líder da craveira de Dhlakama.
Em tempos, o general morais disse que as Forças Armadas estavam a ser partidarizadas pela Frelimo em flagrante violação ao Acordo Geral de Paz. Mantém o mesmo fio de pensamento?
Não tiro nenhuma vírgula sobre o que disse no passado. A maior parte dos oficiais superiores oriundos da Renamo não estão ainda enquadrados dentro da nova orgânica das FADM. Chamam-lhes de assesssores, mas os mesmos não têm nenhuma tarefa dentro do Ministério da Defesa ou das FADM. Só vão ao serviço ler jornais.
Mas temos o caso do vice-chefe do Estado-Maior das FADM, que é da Renamo...
Aquele cargo não passa de decorativo. Olímpio Cardozo não toma nenhuma decisão de relevo dentro do Estado-Maior das FADM. Limita-se a ir ao gabinete receber ordens do chefe de Estado-Maior. Não existe um membro oriundo da Renamo que tenha um cargo de relevo dentro das FADM.
Quem está por detrás desta alegada partidarização?
Existe uma ala de ortodoxos dentro das Forças Armadas, constituída por antigos combatentes e membros das extintas FPLM. São estes que não querem a unidade dentro das Forças Armadas. Acham que as Forças Armadas são propriedade sua e da Frelimo.
O general Hermínio Morais faz parte do Conselho de Defesa e Segurança, liderado pelo Chefe do Estado, na sua qualidade de Comandante-em-Chefe das FADM. Terá colocado esta questão e qual foi a sua reacção?
Já alertei o Chefe do Estado sobre esta questão. Ele garantiu-me que ía trabalhar no sentido de unificar as Forças Armadas.
De quando em vez, Afonso Dhlakama tem vido a público ameaçar retornar à guerra. Sendo uma peça fundamental para um eventual retorno à guerra, acha que existem condições para tal cenário?
O que lhe posso garantir é que, neste momento, não há espaço para o retorno à guerra. Temos que investir no diálogo permanente.
Mas a Renamo tem capacidade para retornar às matas e sobreviver por longo período de tempo na expectativa de negociações?
Trata-se de um segredo militar nosso. Sobre este assunto, não lhe poderei ser útil. Insisto na necessidade do diálogo.
Uma das coisas curiosas em si é que, sendo um destacado general da guerilha da Renamo, não foi integrado no exército. Há quem diga que se tratou de uma estratégia de Afonso Dhlakama para não cair na cilada montada a Jonas Savimbi em Angola, onde proeminentes generais da UNITA foram mortos em 1992. É verdade?
Não é verdade. Eu é que não quis. Há várias testemunhas como Mateus Ngonhamo, que foi ocupar o lugar que me era destinado. Estava cansado da guerra e de receber ordens militares. Preferi descansar. Existiam jovens como o Ngonhamo e outros que achei que deviam integrar as FADM.
Volvidos estes anos, está arrependido?
Nem tão pouco.
Hoje fala-se muito dos homens armados da Renamo. Existem de facto estes homens e se existem constituem um real perigo para a paz?
Não existem homens armados da Renamo, mas sim guardas dos altos dirigentes da Renamo. Não são uma ameaça a ninguém muito menos à paz. Curioso é que só se fala destes homens nos períodos eleitorais.
Há relatos de que estes homens estão envolvidos em actividades de terror em Marínguè e em Inhaminga.
Não há provas. É propaganda eleitoral.
Alguns olham para estes homens como uma suposta retaguarda da Renamo...
Se fossem nossa retaguarda estariam todos aqui na cidade e não em Marínguè, onde são camponeses.
Movimentos como a Renamo sempre procuraram chegar ao poder pela via da força, quando gorada a possibilidade de chegar pela via das urnas. Já pensaram nessa possibilidade ou seja, olhando para trás, estão arrependidos por terem assinado o Acordo Geral de Paz?
Não estamos arrependidos. A guerra tinha já morto muita gente e separado famílias inteiras.
Há quem diga que o líder da Renamo teve medo de chegar ao poder pela força. É verdade?
De um lado é verdade. Se fores a notar, a Renamo já estava a operar na Catembe e na Matola. Fui um dos generais que queriam que prosseguíssemos a guerra até à vitória final, que já estava ao nosso alcance.
Mas o que aconteceu para recuarem?
O presidente da Renamo é que disse para nós recuarmos, para salvaguardarmos a integridade territorial do país e para evitarmos mais banhos de sangue. Eu achava que o poder devia ser tomado à força.
Não se sentiu frustrado com as ordens superiores?
Fiquei, mas o presidente chamou-nos e explicou-nos tudo. Eu era um dos generais que estavam a avançar a caminho da cidade da Beira. Estava motivado e empenhado para tomar a cidade da Beira à força.
Há quem diga que a Renamo contou com o apoio de oficiais seniores da Frelimo nesta guerra. É verdade?
É verdade. Nos últimos anos da guerra, vários oficiais estavam já com um pé atrás e acreditavam na nossa vitória. Houve até oficiais seniores da Frelimo, que não quero aqui mencioná-los, que nos forneciam material bélico.
O senhor ingressou na Renamo com a nona classe e vinha de uma família minimamente estável. O que o fez abraçar a causa da Renamo, na altura conhecidos como "bandidos armados"?
Olha, já não suportava. Vivíamos num país com um sistema que impunha terror a todos e não havia liberdade para as pessoas. Havia necessidade de se pegar em armas e contestar-se o sistema que vigorou no país depois da independência.
Como é que chegou a Gorongosa?
Via África do Sul. Depois fui à Rodesia e, por fim, cheguei a Gorongosa.
Está feliz com o seu contributo nesta guerra pela "liberdade", sendo uma pessoa famosa por causa das suas actividades militares durante a guerra?
Claro. É um combate que acho que valeu a pena. Hoje, apesar de ainda enfrentarmos dificuldades, já é possivel viver livremente neste país. Certamente que ainda existe um longo caminho por rumar.
Quantos anos esteve na mata?
16 anos.
Como é que chegou à patente de Major-General em apenas 16 anos de guerra?
Olha, fui um dos agentes que realmente ascenderam muito rapidamente dentro da hierarquia militar da Renamo. Veja que todos os anos era promovido. Tive o privilégio de operar numa zona de guerra total, que era a Gorongosa. Neste local, realizávamos, em média, três combates por dia. E foi lá onde me destaquei.
Foram anos difíceis da sua vida?
Do ponto de vista material foram terríveis, mas do ponto de vista espiritual, sinto que fiz o que um jovem na minha idade e naquela época tinha a fazer em prol da minha pátria. Devo dizer que a população sempre esteve do nosso lado.
Equaciona a possibilidade de um dia candidatar-se à liderança da Renamo?
Não. Existem quadros.
Acredita que a Renamo vai a tempo de chegar ao poder?
Claro que acredito, enquanto estivermos vivos há esperança.
(Escrito por Atanásio Marcos e José Belmiro, em O PAÍS de 11/01/09)
Muito interessante esta entrevista, mas afirmar que as coisas estão bem na Renamo é a mesma coisa que Armando Guebuza dizer que o estado da nação é bom! NINGUÉM ACREDITA!
Não deixa de ser preocupante a constatação de que num Partido democrático, e após tantos anos, não haja nenhuma alternativa ao líder. ALGO TEM DE ESTAR MUITO ERRADO!