Quando o escritor e dramaturgo francês François de Sade dizia “franceses, mais um bocado de esforço, se quiserdes ser verdadeiramente republicanos”, chamava atenção para a necessidade de os franceses abandonarem o conceito de massa, para evoluírem para um estágio de cidadãos. Tal metamorfose implicava, para Sade, que, no lugar de aceitar tudo o que lhes era impingido como doutrina irrefutável e inquestionável, religiosa ou política, era preciso confrontá-la, para aferir-lhe a aplicabilidade racional, porque, caso contrário, os franceses estariam condenados a louvar os lobos e a odiar as ovelhas. A dimensão do vocábulo “esforço”, de Sade, era holística. Esforço a todos os níveis, mas principalmente ao nível mental.
Recordei-me do “esforço” de Sade durante o dia de ontem, quando fiquei a saber de uma campanha de desinformação totalmente absurda e sebastianista que estava a ser levada a cabo pela Rádio Moçambique. Vou pedir ao estimado leitor para que não se esqueça de Sade, porque precisaremos dele mais adiante. A RM deu como notícia aos milhões de moçambicanos que o embaixador dos Estados Unidos da América, Douglas Griffiths, se havia reunido com o presidente da Renamo, Afonso Dhlakama, e com o do Movimento Democrático de Moçambique, Daviz Simango, e que, nesse encontro, aquele diplomata instruiu os dois líderes da oposição para não aceitarem os resultados e levantarem uma vaga de manifestações contra os resultados.
A fonte da referida notícia não tem nome. É anónima. O estatuto da Rádio Moçambique não permite a veiculação de notícias de fontes anónimas. Mas ontem, a RM abriu uma excepção, para dar corpo a uma fantasia grave e, na pior das hipóteses, doentia. Isso, porque o referido encontro não aconteceu. É uma invenção. Mais grave ainda: há um princípio sagrado do jornalismo, que acabou sendo esfolado nesta empreitada lunática. É o princípio do contraditório. A RM, mesmo com a invenção nas mãos, não se dignou ir contactar o embaixador cuja residência e escritórios não distam mais de vinte minutos da Redacção da RM. A notícia, aliás, a invenção, saiu assim como foi parida: nua, vergonhosa e sem direito a contestação nem confirmação. Isto foi na noite de terça-feira.
Já na manhã de quarta-feira, os pais biológicos da notícia trataram de reivindicar a paternidade, arcando com as despesas de sustento material da notícia fantasiosa. Trataram de organizar um debate para enaltecer a notícia, oferecendo-lhe condimentos analíticos. Mais uma vez, não tiveram a dignidade de convidar o embaixador para dar a sua versão, o que mostra claramente um roteiro passado a limpo de um manifesto de banditismo de imprensa.
Quando pensei que todo este festival de banditismo de imprensa havia terminado, faltava afinal a parte mais sádica, em que o sindicato do crime organizado também reivindica alguma delinquência por tendência. A mesma Rádio Moçambique já estava a noticiar, no mesmo dia, que os autores do debate do “encontro fantasioso”, nomeadamente Emílio Manhique e seu comparsa Gustavo Mavie, estavam a ser vítimas de ameaças de morte, porque alegadamente “denunciaram” o embaixador. Simplesmente insano.
Confesso que, como cidadão, cheguei à chocante conclusão de que, para além da larga campanha de desinformação levada a cabo pela Rádio Moçambique, a estação pública havia também aberto um serviço de obscurantismo jornalístico, em que cidadãos com alguma propensão para falta de escrúpulos, insuflada na preguiça, procuram alguma notabilidade que as pessoas de bom senso nunca lhes atribuíram.
Mas vamos por partes. É mentira que, na terça-feira, o embaixador dos EUA se tenha reunido com Afonso Dhlakama e Daviz Simango para incitar à violência ou para dar qualquer manual de desobediência civil. O que aconteceu é que Shannon Smith – secretária de Estado-adjunta assistente para os Assuntos Africanos, dos EUA, que é hierarquicamente chefe do embaixador – reuniu-se com os três candidatos, nomeadamente Afonso Dhlakama, Filipe Nyusi e Daviz Simango, para falar do processo eleitoral. E os encontros foram em separado.
Mas como a propaganda não vê meios para alcançar os seus objectivos, e, no caso, o ódio é o foco principal, trataram de inventar um encontro de terça-feira. É público o ódio que a máquina de propaganda deste regime, – que encontra na Rádio Moçambique, na TVM, “Notícias” e “Domingo” os meios de difusão – destila contra todos os países que defendem transparência, inclusão e democracia. E os EUA têm sido a sua principal fantasia. É neste âmbito que foram sendo criadas terminologias do tipo “chancelarias”, como adjectivo depreciativo. E como a propaganda tem um condimento irracional, ela contradiz-se a si mesma. Quando estes países dão dinheiro ao Governo, são “parceiros”. Quando exigem contas e alguma dose de civilização, da noite para o dia, tornam-se “chancelarias”.
É vergonhoso o nível para o qual a propaganda do regime está a fazer descer as suas cruzadas de propagação da imbecilidade. Ficamos perplexos diante de delirantes afirmações que a Rádio e a TV prestimosamente vão colher junto de pessoas que só exprimem a desorientação e o ódio, ou, na melhor das hipóteses, concepções fantasiosas não muito distantes do padrão de alucinação criado pelo consumo de substâncias entorpecentes. Que plano subjaz na mente de quem apresenta sintomas de desintegração mental? A resposta é todo o episódio da Rádio Moçambique. Voltemos a Sade e ao “esforço” para ser republicano. Um pequeno esforço para compreender tudo isto fez-me desembocar num pequeno livro de Psicanálise que, em tempos de Faculdade, me fora emprestado pelo meu professor de Psicologia da Comunicação, que infelizmente faleceu sem que eu lho tivesse devolvido. É a Psicopatologia Geral, do psiquiatra alemão Karl Jaspers. Também filosófo, Jaspers foi um dos pioneiros a estudar o delírio, cuja Ordem está a funcionar em Moçambique. Jaspers definiu a “ideia delirante” como “uma representação morbidamente falseada, cuja demonstração não se pode comprovar”. Esta ideia, ou conjunto de ideias, não é acessível ao raciocínio e argumentação lógica nem é modificada pelo confronto com a realidade. Esta definição assenta como uma luva ao transtorno psíquico de que o cidadão Gustavo Mavie e o seu amigo padecem. E, já em 1958, Jaspers havia categorizado dois padrões supremos do delírio. O primeiro é o “delírio de grandeza”. As pessoas que sofrem deste tipo de delírio consideram-se superiores às outras em diversos aspectos. Podem considerar-se a única pessoa inteligente que existe no mundo. Consideram-se pessoas especiais, e que a sua existência tem uma grande importância para a humanidade. É nesta doença que vivem, infelizmente! Autonomearam-se “analistas políticos” baseados na hermenêutica da fome. O segundo tipo de delírio aparece como consequência da ausência de tratamento do primeiro tipo de delírio. Chama-se “delírio melancólico ou de ruína”, que é frequente na depressão nervosa psicótica. Como se outorga a si mesmo o estatuto de figura importante, o doente crê-se ameaçado por entidades ou acontecimentos irremediáveis. Foi exactamente o que aconteceu com os dois “artistas” que se dizem ameaçados. Acham-se ameaçados devido à sua alta (in)utilidade pública. Não sejamos complacentes: isto é mesmo uma doença, e o que estes dois precisam não é de protecção policial, mas médica.
Não conheço bem o senhor Emílio Manhique, para além daquilo que o ouço dizer pela Rádio. O único instrumento de análise que tenho para aferir o grau de seriedade do Emílio Manhique é a sua amizade e cumplicidade com o cidadão Gustavo Mavie, o qual conheço melhor e cujo comportamento nocivo não só está registado nas suas diferentes intervenções que inspiram o ódio, mas também está registado num acórdão do Tribunal Administrativo, a que tive acesso. Gustavo Mavie é um fugitivo da Justiça. Há uma sentença lavrada pelo Tribunal Administrativo sobre roubo de dinheiro público da AIM e falsificação de cheques, praticado por Gustavo Mavie. Até hoje, esse dinheiro não foi devolvido. No lugar de estar detido, a “pena alternativa” atribuída a Gustavo Mavie é louvar o regime, inspirar o ódio e desprezo contra a oposição e todas as forças vivas da sociedade que representem alternativa ao pensamento do regime, e que incluem embaixadas do Ocidente. É nesta personalidade onde Emílio Manhique encontra o exemplo e a excelência da análise política sem direito a contraditório.
Por tão comprovado que está algum pendor dos ilustres para fantasia e o seu culto eloquente do delírio, é provável que as supostas mensagem de ameaça de morte que os dois ilustres tenham recebido encontrem no emissor e receptor o mesmo sujeito. Ou seja, há fortes possibilidades de estes sujeitos serem autores das ameaças contra eles mesmos. É assim como funciona o delírio. E a Ordem dos Delirantes de Moçambique só está a cumprir o seu manifesto.
(Matias Guente, Canalmoz)