Friday, 10 August 2012

Absurdo

A sociedade moçambicana tem razões para acolher com apreensão a “medida” do Governo visando reduzir a mendicidade. É ridículo, no mínimo, pretender casti- gar quem presta solidariedade aos enteados da pátria. Enteados porquê? Porque os mendigos não brotam do chão. Eles são fruto dos erros que o país cometeu e persiste neles. São fruto da distorção de prioridades. São fruto de políticas públicas equivocadas. São fruto de regalias para uns e uma mão cheia de nada para a maioria.
A forma como o Governo pretende extirpar os mendigos da paisagem urbana é motivo, mais do que suficiente, para acreditar que vivemos sob o peso de uma liderança que acredita piamente que aquilo que o olho não vê o coração não sente. Mas o que mais atrai a atenção do observador é, acima de tudo, o vigor revelado para construir uma casa pelo tecto.
O Governo odeia a mendicidade. Se fosse possível, os exemplos não nos deixam mentir, estabelecia uma pena capital para todo o mendigo desta pátria de heróis. Na cimeira da União Africana, num passado recente, tivemos dois exemplos elucidativos do pavor que os nossos líderes têm da pobreza e dos pobres do país.
Ergueram um muro de proporções gigantescas para esconder as casas precárias de bloco cru que a falta de dinheiro não deixou concluir. Depois de darem asas à insensibilidade com o imponente “muro da ver- gonha”, assim o povo o baptizou, transferiram todos os mendigos para Catembe, bem longe do raio visual dos estadistas que visitaram Maputo naquele 2003.
Faltando ao presente, encontramos a mesma insensibi- lidade de sempre. A mesma falta de valores e o mesmo descaso em relação aos moçambicanos. Ou seja, se dar esmola dá direito à multa, o pedinte ou mendigo será castigado com a prisão. Belo, simples e prático. Iluminada e clarividente decisão.
Não podíamos, como Governo, ter urdido uma melhor solução para acabar com este mal que apoquenta e agride a nossa visão, os pobres. No fundo é disso que se trata. Penalizar alguém por ser pobre.
Não cremos que seja possível o Estado provar que um indivíduo é mendigo por preguiça. Ainda que existam pedintes e mendigos que o são por desamor ao trabalho. Mas não é isso que está em causa quando não sabemos onde reside o trabalho.
O país, antes de penalizar quem encontra algo para enganar o estôma- go nas ruas, devia criar condições para que a mendicidade deixe de ser um refúgio ou a única opção dos inválidos.
Prender é uma solução tremendamente absurda. A actual população prisional passa maus bocados. A alimentação não tem qualidade nenhuma, quando há. Sem contar que as nossas cadeias não regeneram, formam criminosos.
Corremos, com essa iluminada medida, o risco de acabar com os mendigos e aumentar drasticamente o número de criminosos. Eles só preci- sam mesmo de um estágio nas nossas faculdades de crime, as cadeias.
Efectivamente, o Estado não tem legitimidade para punir quem recebe esmola e muito menos quem, substituindo-o, dá. O mundo da mendicidade é um país independente. É um país que desconhece a assistên- cia social. Os cidadãos que, de bom grado, baixam os vidros dos seus carros e oferecem uns trocados são os doadores que alimentam estes “países” (in)dependentes.
"Países”, esses, que não são muito diferentes do país que lhes pretende castigar. Vivem, tanto os mendigos, assim como o Estado, com as mãos estendidas. Uns pedem fazendo jus à sua condição de mendigos e outro, o Estado, estende a mão de fato e gravata.
A diferença é que os mendigos não prestam contas a ninguém. O Estado, esse, presta. Por isso precisa de extirpar os mendigos para reivindicar trabalho. Balelas.

Editorial, A Verdade

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