Monday, 17 October 2011

Frelimo já tem proposta de revisão da Constituição

Das duas uma: ou não era isto propriamente que a Frelimo pensava propor e recuou face à pouca vontade da esmagadora maioria da sociedade civil em debater a revisão da Constituição, num contexto em que a crise financeira obriga a outras prioridades, e ainda face às indisfarçáveis desconfianças do que poderia estar por detrás da ideia de mexer na Constituição, ou ... está a lançar um isco.
Ao fim de dois anos de muito alarido e secretismo, a Frelimo surpreendeu, esta semana, ao apresentar uma proposta de revisão da Constituição muito longe das expectativas que ela própria ajudou a criar pela forma como lançou este debate. O conteúdo da proposta tornada pública esta quinta-feira está no âmbito de uma revisão puramente normal. Introduz muito poucas mudanças substanciais na Constituição da República, por isso, entre a promessa feita e o resultado produzido, é legítimo perguntar o que há de sensível na proposta apresentada esta quinta-feira, que justificasse que de há dois anos para cá, a Frelimo optasse pelo secretismo, sempre que alguém questionasse o que se queria mudar na actual Constituição. Ou continuamos enganados e não era propriamente este o resultado esperado pelos próprios militantes da Frelimo?
É certo que a proposta tem uma assinalável incidência no funcionamento dos órgãos de administração da justiça, reforçando-lhe algumas garantias, como no caso do Provedor de Justiça e do Tribunal Constitucional, mas ainda assim, insuficientes para a expectativa gerada. A maioria das mudanças propostas limita-se a alterações de forma, de designações e pequenos ajustamentos.
As reformas mais nobres, ligadas à mudança do sistema político ou a uma melhor repartição dos poderes pelos órgãos de soberania, que vêm suscitando acesos debates, há anos, foram completamente ignoradas, e há razões de sobra para questionar se, em época de austeridade, vale a pena gastar perto de um milhão de dólares (mais o dinheiro que se vai despender na mudança do estacionário interno das várias instituições, que passarão a adoptar novas designações) sem se avançar a fundo.
Parece, pois, haver um irrefutável desajustamento entre as promessas que os dirigentes da Frelimo fazem nos seus discursos e o que eles se propõem a mudar, efectivamente, na Constituição. Ao depositar a proposta de revisão do texto constitucional, a chefe da bancada da Frelimo, Margarida Talapa, disse que, com a proposta apresentada, o seu partido “clarificava o que o povo esperava”. Eduardo Mulémbwè referiu que o desafio da comissão que dirige é “fazer reflectir na nova lei constitucional o sentimento popular de hoje em termos de visão quanto ao progresso do país”.
No entanto, quando se analisa as propostas incorporadas no documento da Frelimo, é difícil encontrar lá muitos elementos que reflictam, verdadeiramente, uma “nova necessidade ou sentimento do povo”. Passar a chamar Governador de Província ao que hoje designamos Governador Provincial, ou Administrador de Distrito ao actual Administrador Distrital, custa ver em que, verdadeiramente, acrescenta às expectativas ou sentimentos dos moçambicanos, como referiram Talapa e Mulémbwè. Como diz o Gungu, numa das suas peças, o povo é mesmo como a loiça: usamos e desfazemo-nos dela, quando nos apetece!
É certo que a proposta reduz de dois mil para mil o número de cidadãos que podem solicitar ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade das leis ou ilegalidade de actos normativos dos órgãos do Estado; que se estabelece um maior equilíbrio nos tribunais supremos, por exemplo ao estabelecer na própria Constituição da República a composição do Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa, antes remetida a uma lei específica, ao contrário do que sucedia com as outras magistraturas. E sobretudo – e esta parece a mudança mais significativa – estabeleceu-se um conceito novo e feliz de chamar “Autoridades Comunitárias”, sem separação, aos chefes tradicionais, secretários de aldeia ou de bairro e outros líderes legitimados como tais nas respectivas comunidades, até agora não claramente reconhecidos pelo Estado. Mas estas alterações são poucas para a expectativa criada e, sobretudo, para “clarificar o que o povo moçambicano esperava”.
A proposta da Frelimo acrescentaria algo aos moçambicanos, eventualmente, se a Frelimo tem sido mais ousada e promovesse alterações substanciais nas competências dos órgãos de soberania, algo que não fez; se reforçasse mais a fundo as garantias de independência do poder judicial e do Ministério Público, que ainda não são manifestamente suficientes no actual texto constitucional; se não permitisse que o procurador-geral da República continue à mercê de ser demitido e exonerado pelo Chefe do Estado, sem necessidade absolutamente nenhuma deste se justificar pelo seu acto; se reduzisse a concentração de poderes no Presidente da República e promovesse a sua melhor repartição pelos outros órgãos de soberania. Mas tudo isto, que é estruturante, que é substancial, que altera, em termos reais, a vida das pessoas e das instituições, pouco mudou.
Das duas uma: ou não era isto propriamente que a Frelimo pensava propor e recuou face à pouca vontade da esmagadora maioria da sociedade civil em debater a revisão da Constituição, num contexto em que a crise financeira obriga a outras prioridades, e ainda face às indisfarçáveis desconfianças do que poderia estar por detrás da ideia de mexer na Constituição, ou ... está a lançar um isco.
A chefe da bancada da Frelimo repetiu, várias vezes, a ideia de que a proposta da Frelimo era “um ponto de partida”; Mulémbwè disse que a sua comissão estava aberta a receber outras propostas de cidadãos e organizações da sociedade civil, sem necessidade destes cumprirem a exigência de acompanhar as suas propostas de uma avaliação do impacto orçamental ou de assinaturas, como sucede com os partidos políticos. Ou seja, a Frelimo pode querer que seja a “sociedade civil” ou os “cidadãos” a apresentarem as propostas mais estruturantes de mudança na Constituição para, posteriormente, a mesma aparecer a adoptar essas propostas. A nível do discurso, dirá sempre que foi a sociedade civil, os moçambicanos, a proporem mudanças de fundo e não ela e que acabou assumindo porque é um partido do povo. Isso não seria propriamente novo, na nossa política doméstica.
Agora o que não se compreende é que, ao fim de dois anos em que se esperou algo verdadeiramente grande, a Frelimo apresente uma proposta de revisão constitucional com pouca substância e lhe chame “ponto de partida”. Qualquer ponto de partida na revisão constitucional tem subjacente uma ideia, uma ideologia, clara e inequívoca. Na proposta apresentada, viu-se pouco isso...

Jeremias Langa, O País

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