Sunday, 18 September 2016

Houve descontinuidade do diálogo e estamos em guerra

A viúva de Samora Machel e actual presidente da Fundação para o Desenvolvimento   da  Comunidade (FDC), Graça Machel, defende que o retorno do conflito militar no país depois de mais de 20 anos do Acordo Geral de Paz (AGP)    se   deve   essencialmente  à descontinuidade da  cultura de diálogo e da não aceitação de quem pensa diferente de nós, nos últimos dez anos de consulado de Armando Guebuza.


Convidada pelo Instituto de Relações Internacionais (ISRI)  para falar da “Vida, pensamento e obra de  Samora Machel”  no âmbito das comemorações  dos  30  anos da criação daquela instituição  de ensino superior, Graça  Machel trouxe à tona o que considerou de visão do primeiro  Presidente de Moçambique na educação, produção, no processo de descentralização do país e acabou desaguando no actual cenário político do país. No dia 19  de  Outubro comemora-se  o trigésimo  aniversário da morte de Samora Machel no trágico acidente de Mbuzini,  em 1986. Na sua alocução, esta quarta-feira, Graça  Machel disse  que  apesar das políticas, pensamento e  visão de Machel  em torno da gestão da coisa pública, produção, ensino e desenvolvimento  do país,  entre outros,  terem  sido apresentados nos anos 70 e 80, estas continuam relevantes para a realidade do país. Graça  Machel acrescentou  que cada presidente tem a sua maneira de fazer as coisas,  procurando, contudo, adoptar o seu estilo próprio de liderança, mediante os desafios de momento. Nessa  perspectiva, ela sublinhou que não se está a fazer bem quando em cada mandato os antigos titulares  são ignorados  ou totalmente descartados. Nós somos uma nação e estado novo;  muita da  nossa  memória institucional  está connosco e não está  escrita.  Ao invés  de fundir equipas,  temos  tendência  de  as afastar por completo  e, em certos casos, temos a dura missão de ter de reinventar a roda”, disse. Tomou como exemplo o pensamento de Machel, que considerou que durante muito tempo foi descartado  por algumas  lideranças, mas  que  o povo, com destaque para  os  hapeiros  e  vendedores dos mercados, tiveram de resgatar através  das  diferentes   gravações que existem na praça e daí voltou a ser uma  referência  obrigatória quer para os seus contemporâneos quer para as novas gerações. Analisou a liderança de Chissano e disse ter notado que a única descontinuidade   que se verificou foi causada pelos desafios que se impuseram    naquele   momento, que passavam pela transformação do sistema de partido único para o multipartidarismo. “Não se fala de Chissano, mas o seu trabalho como dirigente teve um grande impacto.  A transformação do Estado moçambicano do sistema   de   monopartidário para o multipartidarismo foi obra de Chissano. É interessante que nós não conhecíamos  um outro modelo se não fosse o de partido único. Chissano  fez um périplo por todas as províncias  para consultar  o povo que  prontamente negava.  Mas  ganhou coragem suficiente  e disse que a realidade já não era a mesma e tínhamos de mudar de sistema. Dito e feito mudou e nos trouxe a paz que durou 20 anos e todos pensávamos que a paz vinha para ficar, mas estamos  agora  ergulhados  num novo conflito”, disse. Acrescentou que, se tivessem persistido os princípios  e a maneira dialogante  que caracterizou  o mandato  de  Joaquim  Chissano, certamente  que  não  estaríamos numa nova guerra. “isto é descontinuidade, ouviram meus filhos”, exclamou. Referiu que a descontinuidade  da prática  e modelo  de governação de Chissano  aniquilou  a postura de diálogo, de aceitar aquele que pensa diferente de nós e trazê-lo para um espaço no qual se sinta moçambicano. “Quando perdemos essa cultura dialogante  as posições  recrudesceram e o conflito  rebentou e agora a batata quente, bem quente mesmo, passou para as mãos de alguém que é quase da vossa geração”, sublinhou, numa clara alusão à herança ao actual Presidente Filipe Nyusi. Apelou  aos académicos para que procurem encontrar novos métodos de pensamento que permitam aos   moçambicanos   conviverem uns com os outros e se aceitarem mutuamente.
 Coragem para negociar
Graça Machel explicou que as primeiras negociações entre o governo e a Renamo  datam de 1984, e que foram iniciadas e conduzidas por Samora Machel. Até Outubro desse ano,  recorda  que  estavam todas as condições  criadas para a assinatura de um acordo  para o fim da guerra, mas que na hora da verdade houve uma mão externa que impossibilitou   a viabilização do acordo.Hoje, passam 32 anos mas o conflito continua  depois uma paragem de 20 anos, ao que ela apelou à necessidade de se ter coragem na tomada de decisões para fazer o que logo à primeira vista parece impossível. Falou do acordo de Nkomati,  que segundo ela gerou controvérsia em alguns sectores, mas que era um imperativo dado que estava em jogo a questão da soberania nacional.Ela considerou  esse acordo como tendo sido um acto de coragem, pois, nas suas palavras, foi preciso que o governo  moçambicano   se convencesse de que não estava em condições de se defender  da agressão movida pelo então regime do apartheid na África do Sul. Recordou  que na altura, depois da  Frelimo ter derrotado  o colonialismo  português e o regime minoritário branco da   Rodésia, se considerava  imbatível  nas confrontações  armadas, mas que ao aperceber-se de que havia um interesse maior  que passava pela preservação da soberania nacional e proteger  o cidadão  era preciso assumir actos de muita coragem e tomar medidas céleres para colocar fim ao conflito. Abordando   a actual situação no país, Graça  Machel entende que os dirigentes  devem usar todos os  instrumentos   que  têm  à  sua disposição  para restaurar a paz, e que  esta seja duradoura.Propõe uma reflexão, de modo que os moçambicanos encontrem um espaço para sentar  e procurar  as similitudes daquilo  que os faz iguais e trabalhar para ultrapassar as diferenças. “O nosso desafio é como construir uma paz duradoura para não haver mais   conflitos  e  reconciliarmos como moçambicanos  que  todos somos”, disse Graça Machel.
Servir o povo
Um dos  aspectos marcantes  de Samora Machel foi o de ter dito que os “camaradas deveriam ser os primeiros nos sacrifícios e últimos nos ganhos”, uma clara chamada de atenção para servir o povo  e não se servir dele. Sobre este ponto, Graça Machel  destacou que esta maneira de ser deve constituir a marca dos dirigentes. Disse que Samora priorizou  o povo  até ao ponto  de não se ter preocupado em erguer grandes mansões.“Não estou a dizer que os nossos dirigentes  devem viver em casinhas como  as de Samora. Isto é apenas um exemplo de onde um dirigente  coloca as suas prioridades”, disse.Criticou a cultura  de  servidores públicos que ignoram as necessidades  do povo, concentrando-se apenas em ganhos pessoais, o que resulta no excesso da burocracia e  morosidade  na tomada de decisões.“Os funcionários  públicos não podem  complicar  os cidadãos  e impedi-los  de acesso ao que é de direito”.
Povo deve ter espaço
Recordou-se dos tempos em que o povo  tinha  direito  à palavra a todos os níveis da administração pública, incluindo  nos locais de trabalho.Exemplificando,  ela disse que a planificação   começava  da  base para  o topo, oportunidades  que nos  últimos tempos  têm  feito muita falta, o que para ela deve ser corrigido com o aprofundamento do processo  de  descentralização, dado que o modelo vigente denota um grande vazio sobre como as pessoas podem  opinar  e resolver os seus problemas.“A democracia  é uma  exigência fundamental  para  que  qualquer um possa falar na primeira pessoa e esse espaço deixou  de existir.  Temos pessoas que nos representam, mas precisamos de espaço para dizer o que pensamos ou precisamos na aldeia”, disse.
Educação em primeiro lugar
Mesmo em  tempos  de  intensa guerra, a antiga ministra  de educação diz que Machel  sempre colocou a formação do homem em primeiro  lugar.   Prova disso, diz que são os diversos pensamentos que foi desenvolvido ao longo do tempo como  é o caso: “fazer da escola a base para o povo tomar o poder; estudar, produzir  e combater “.Segundo Graça Machel, nesse período  a prioridade  era o combate ao colonialismo, mas o presidente de então dava primazia aos estudos nos seus discursos, de forma que  o povo adquirisse conhecimento  científico que era condição primordial  para depois se produzir.Apesar de estarmos num período onde os  são  desafios  diferentes, entende a activista, que a base discursiva que  privilegiava o conhecimento  para espevitar produção continua  actual e mostra-se cada vez mais necessário.Isto porque  Moçambique   é um país  de  consumidores  e não  de produtores, o que  faz com que importemos mais de 80% do que se consome, sendo que os níveis de pobreza continuam elevadíssimos. Desafiou  os académicos a adquirem uma mentalidade revolucionaria no que diz respeito a produção  de modo  a colocar o país com altos níveis de suficiência alimentar.

Por Argunaldo Nhampossa, Savana 

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