Tuesday, 26 April 2016

O que mais falta para acordar este povo?

 
Maputo (Canalmoz) - No auge da ditadura militar no Brasil – que se caracterizou, como é óbvio, pelo esmagamento de toda a iniciativa de liberdade, – o pedagogo brasileiro Paulo Freire disse uma frase que serviu para mobilizar as pessoas que acreditavam que o alheamento face a toda vaga de arbitrariedades era a forma mais recomendada para a sua sobrevivência. Disse Paulo Freire: “O que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cómoda, talvez, mas hipócrita, de esconder a minha opção ou o meu medo de acusar a injustiça? Lavar as mãos em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele”.
A declaração de Paulo Freire assenta como uma luva na situação que se vive em Moçambique. O alheamento dos cidadãos face ao iminente colapso do país é tão assustador quanto a acção criminosa dos que arrastaram o país até onde chegou. O país está mergulhado num caos económico e político, com a guerra a desempenhar o decorativo papel da cereja no topo do bolo.
Impressiona-nos, de certa forma, que os cidadãos moçambicanos tenham optado por cortejar esta agenda de destruição, em vez de se levantarem e defenderem o país, a dignidade colectiva e o pouco que nos honra como povo.
Há exactamente quinze dias, havíamos informado que, afinal, para além da escandalosa e criminosa dívida contratada para a criação e funcionamento da Empresa Moçambicana de Atum (EMATUM), o banco “Credit Suisse”, que fez o empréstimo, anunciou aos detentores das obrigações da EMATUM, logo depois da aprovação do diferimento do prazo da dívida, que havia um outro empréstimo, de 787 milhões de dólares, a adicionar aos 850 milhões da EMATUM. Para os investidores, o pânico foi gerado pelo facto de não haver garantias de que os 850 milhões de dólares – que haviam sido contratados a um juro de 8,5%, com período de maturação de sete anos – poderão ser pagos [agora com juros de 14%, devido ao alargamento para 2023], havendo uma outra dívida.
Tal como não foi vista qualquer espécie de manifestação de indignação colectiva perante a penhora do país aos agiotas internacionais com a ajuda dos nossos bandidos de casa, o anúncio da existência de uma dívida adicional de 787 milhões de dólares também quase não indignou a ninguém. Regra geral, são comentários supérfluos, feitos de uma pseudo-indignação individual, com ajuda de um telemóvel, que nos ajuda a acobardar-se por detrás das tais “redes sociais”, que se transformaram em praça de lamentações individuais.
Hoje, há mais informação carregada de duplo choque.
O primeiro choque é que a tal dívida de 787 milhões – alegadamente contratada para financiar a “ProIndicus”, uma empresa obscura apresentada como sendo do Estado, mas que, na verdade, é privada – já não é de apenas 787 milhões de meticais. O Fundo Monetário Internacional, que andou a elogiar por muito tempo estes bandidos, veio agora dizer que, em 2014, Armando Guebuza aumentou a tal dívida para o tecto máximo permitido, que é de 950 milhões de dólares, ou seja, a dívida real, só da “ProIndicus”, é, na verdade, de 950 milhões de dólares. Muito superior à da EMATUM, que era o escândalo inicial.
Se esta informação não for suficiente para indignar o eleitor, Armando Guebuza, Manuel Chang e Filipe Nyusi têm mais informação chocante. É que, para além da dívida da EMATUM, dos tais 850 milhões de dólares que estão a vencer a juros, agora pornográficos, de 14%, para além da dívida da “ProIndicus”, que, agora, também subiu para 950 milhões de dólares, há uma terceira dívida, de 550 milhões de dólares, contratada aos russos do “VTB” Moscovo para comprar lealdades e humor facial no projecto da Base Logística de Pemba.
Feitas as contas de 850 milhões de dólares + 950 milhões de dólares + 550 milhões de dólares, conclui-se que Guebuza, Chang e Nyusi, numa só assentada, conseguiram para os seus bolsos 2,3 biliões de dólares, para fins que até aqui ninguém sabe explicar. O país está com o serviço da dívida insustentável e com fama internacional de Estado caloteiro por culpa de três cidadãos devidamente identificados e perfeitamente localizáveis. Apenas três cidadãos, cujo domicílio e os locais que frequentam são do domínio público, hipotecaram o futuro de duas ou três gerações e continuam impunes, a gozar com a nossa cara.
Se isso não indignar suficientemente o povo moçambicano para, em acção colectiva, dizer “basta!” e responsabilizar estes gatunos, então nada mais irá indignar este povo. Se Guebuza, Chang e Nyusi continuarem a passear a sua classe impunemente, enquanto nos acobardamos, é caso para dizer que renunciámos à nossa dignidade e ao respeito próprio.
Se este saque concertado não for suficiente para nos colocar na rua a exigir responsabilização, então merecemos que esta escumalha nos governe.
Tal como dissemos na nota de intróito desta reflexão, e em concordância com Paulo Freire, se escondemos a opção pelo bem, pela dignidade e pela responsabilização só por causa do medo, então estamos a reforçar o poder do opressor. Em síntese, estamos a dizer que os bandidos estão correctos.
Quanto a nós, é um dever moral que cada cidadão acorde para defender o futuro dos seus filhos. Mais do que essa visão futurista, é preciso que nos indignemos e façamos algo em nome deste país que uma vez fez história com trabalho e união. Não permitamos que isto passe assim como está. É uma questão de respeito próprio. Estamos a dar um péssimo exemplo aos mais novos ao tolerar tanta vigarice em nome do medo. A maior arma que está nas mãos destes vigaristas é a nossa falta de consciência civil e a tendência que temos de nos demitir da mais elementar e nobre responsabilidade, que é defender o país e a soberania de todos nós como povo. Eles estão errados, e não o povo. Mas, se o povo não compreende isso, então o mal vai governar-nos por muito mais tempo. Resta-nos perguntar: que tipo de humilhação falta para acordar este povo?



(Editorial, Canalmoz, Canal de Moçambique)

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