Wednesday, 8 July 2015

Instinto controlista prejudica esforços para a despolitização do Estado



Quando se acreditava que no actual diálogo entre o governo e a Renamo as duas partes já haviam ultrapassado a questão da despolitização da administração pública, eis que surge um novo impasse.
Enquanto a Renamo defende que o documento de compromisso assinado na semana passada deve ser sufragado no seu actual estado pela Assembleia da República, a delegação do governo entende que o órgão legislativo não é obrigado a aceitar o documento, podendo, no seu melhor juízo e usando a prerrogativa do seu poder soberano, introduzir nele as alterações que julgar pertinentes.
Em termos práticos, isto significa um retorno ao ponto de partida. O governo entende, ainda, que muitos dos aspectos contidos no documento estão previstos em dispositivos legais já existentes, nomeadamente a Lei do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado, a Lei de Procedimentos Administrativos, a Lei de Base da Organização e Funcionamento da Administração Pública, a Lei da Probidade Pública, entre outras.
Perante esta situação, há aqui duas questões que se torna pertinente levantar. A primeira é, se o governo tinha a consciência de que havia leis que esgotavam esta matéria, porque é que não tornou clara essa posição desde o princípio? A segunda é mais complexa, e está relacionada com o princípio de separação de poderes que orienta a organização do Estado moçambicano. Num passado muito recente, este princípio esteve tacitamente suspenso devido a uma necessidade urgente e pontual de pôr fim a um conflito armado que ameaçava devastar o país; isso passava por estabelecer um ambiente favorável para que a Renamo pudesse participar nas eleições de Outubro passado. Nesse contexto, entendimentos alcançados entre o governo e a Renamo foram submetidos à Assembleia da República, que em alguns casos teve de se reunir de emergência para os aprovar sem qualquer tipo de questionamento.
É preciso questionar quais são os limites deste regime de excepcionalidade, e se a Assembleia da República deve continuar a ser uma mera instituição receptora de expedientes executivos que devem ser aprovados, independentemente de se concorda ou não com eles.
Mas ao reflectir sobre todas estas questões é importante analisar os factores que levam a Renamo a uma tal obstinação, e como é que os processos formais da nossa administração pública serão sempre matéria de algum questionamento.
Tomemos o exemplo dos Secretários Permanentes. Em teoria, a função de Secretário Permanente constitui o topo da carreira na Função Pública. A própria designação deriva da suposição de que eles são permanentes nas suas funções, mesmo em momentos de mudança de regime ou de substituição do titular nas instituições onde eles exercem os seus cargos.
Eles não são políticos, e a sua designação não obedece aos critérios de confiança política. Mas isto é o que está legislado; pura teoria, de nada semelhante à prática. A prática demonstra que esta não tem sido a postura assumida pelo executivo, e que a função de Secretário Permanente está a ser cada vez mais politizada; banalizada, se quisermos.
Na sequência da reestruturação ministerial introduzida pelo actual Presidente da República, que resultou no amalgamento de alguns ministérios, enquanto outros adquiriam novas funções ou desapareciam completamente, o governo lançou um concurso público para o provimento de 16 vagas de Secretários Permanentes.
Opinião devidamente bem informada aconselharia que o problema seria resolvido simplesmente com a colocação dos vários Secretários Permanentes nos diferentes ministérios, uma vez que já sendo titulares e tendo anteriormente passado por um concurso público, eles não careciam da necessidade de terem de provar a sua competência. Por outras palavras, eles não são Secretários Permanentes porque alguém os designou para aquele lugar, mas por mérito próprio, resultante do seu percurso como funcionários públicos. Mas tal procedimento lógico estaria em contrariedade com o desejo de cada um dos novos ministros de ter um Secretário Permanente da sua simpatia e conveniência. É absolutamente anacrónico, por exemplo, que o painel que entrevistou os candidatos a novos Secretários Permanentes tenha incluído os titulares dos mesmos ministérios para os quais eles concorriam. Isto, se é que algum ministro devia fazer parte daquele painel. Se os ministros são nomeados em função da confiança política que gozam da parte do soberano, e como tal figuras políticas por excelência, torna-se incongruente que eles tenham de estar envolvidos no processo para a selecção do mais alto funcionário administrativo e financeiro dos seus próprios pelouros. Isto representa, no mínimo, uma grosseira interferência do poder político no funcionamento da Função Pública, esta que deve ser independente e profissional.
As melhores práticas de administração pública aconselham a deixar essa responsabilidade nas mãos de uma comissão especializada, protegida de qualquer tipo de interferência executiva, e actuando em estrita observância da legislação pertinente.
O instinto controlista continua a não permitir que Moçambique atinja os níveis de confiança necessários para estabilizar as instituições do Estado e, desse modo, afastar todos os fantasmas que têm sido a característica fundamental do relacionamento entre as duas principais forças políticas do país.

 
Editorial do Savana, 03-07-2015

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