Friday, 13 March 2015

PGR tem o dever de investigar Guebuza







GRAVES SUSPEIÇÕES CONTRA ANTIGO PR NA VENDA PARCIAL DA ENI

Publicou o ‘Canal de Moçambique’, na sua edição número 293 [semanário], de 25 de Fevereiro de 2015, páginas 2 e 3, um artigo intitulado ‘Antigo PR nas malhas da corrupção internacional – Como Guebuza vendeu o gás à ENI’, no qual são feitas, contra o cidadão Armando Guebuza, que foi Presidente da República (PR) de 2 de Fevereiro de 2005 a 15 de Janeiro de 2015, graves acusações de prática do crime de corrupção e/ou conexos.
O artigo atrás referido, que era o principal destaque da edição em que o mesmo foi inserto – capa sob o título ‘Guebuza na teia da corrupção internacional: Vende-pátria –, teve como fonte primordial um trabalho do jornal italiano ‘Il Fatto Quotidiano’, que, segundo a narração do ‘Canal de Moçambique’, “teve acesso ao processo de investigação do caso ENI (Ente Nazionale Idrocarburi)/SAIPEM (Società Anonima Italiana Perforazioni e Montaggi)”.
São feitas nessa peça jornalística, conforme referido acima e nos termos em que será sinteticamente recuperado nas linhas que se seguem, acusações graves, aliás, muito graves, a Guebuza, que, pela sua qualidade de antigo PR, devem preocupar não só a ele e aos seus familiares e sequazes, como a todos os moçambicanos que, durante uma década, o tiveram como o mais alto magistrado da nação, termos em que, para o bem do próprio antigo PR e de todos os contribuintes, o Ministério Público deve investigar o que se reportou.
É, de resto, atento ao potencial de os órgãos de comunicação social denunciarem atropelos à lei criminal (geral ou especial), que o legislador ordinário fez questão de inserir, na Lei número 18/91, de 10 de Agosto (Lei de Imprensa), a figura de depósito legal, na esteira do que o director de cada órgão de informação escrita tem o dever de “enviar gratuitamente no dia da publicação um mínimo de dois exemplares de cada número...[à] Procuradoria-Geral da República” [alínea c) do artigo 16].
Chamamos atenção para o facto de não pretendermos sugerir, com este texto, que Armando Guebuza possui mesmo responsabilidades, ou o contrário, no que o ‘Canal de Moçambique’ e o ‘Il Fatto Quotidiano’ ecoaram a seu respeito. Até porque, conforme decorre da Constituição da República de Moçambique (CRM), todos os cidadãos gozam da presunção de inocência até que exista uma decisão judicial definitiva ou com trânsito em julgado (número 2 do artigo 59). Mas à PGR, enquanto Ministério Público (MP), compete “exercer a acção penal” e “zelar pela observância da legalidade e fiscalizar o cumprimento das leis e demais normas legais” [alíneas a) e b), respectivamente, do número 1 do artigo 4 da Lei número 22/2007, de 1 de Agosto (Lei Orgânica do Ministério Público e Estatuto dos Magistrados do Ministério Público)].
Das questões de fundo
Tendo como ponto de partida o que a retro citada publicação transalpina reportara, mais o que escrevera a especializada ‘Africa Energy Intelligence’, com sede em Paris, capital francesa, o ‘Canal de Moçambique’ insere, na sua edição de 25 de Fevereiro de 2015, uma série de situações nas quais Guebuza aparenta estar em conflito com a lei e com as boas práticas. Reproduzimos, a seguir, o essencial dessas situações:
Entre finais de 2012 e princípios de 2013, a ENI, com avultados interesses na ‘Área 4’, em offshore, na Bacia do Rovuma, na província de Cabo Delgado, chega a um acordo [formalizado a 13 de Março de 2013] com a chinesa CNPC (China National Petroleum Corporation), através do qual esta última viria a adquirir, por compra, 28.57% da sua participação, com o que a ENI cedia 30% da sua participação total;
Como o assunto estivesse a ser “directamente tratado com Armando Guebuza e não com o Estado moçambicano”, de que ele era empregado, aventa-se a hipótese de o então PR ter proposto à ENI uma espécie de isenção de impostos, “num acordo em que os gestores da ENI teriam que ‘dar refresco’ a Armando Guebuza;
Depois que a ‘Africa Energy Intelligence’ publicou, na sua edição de Março de 2013, uma peça denunciado que a ENI estava a tudo empreender para evitar a tributação do Imposto das Mais-Valias com a venda de parte das suas atrás referidas participações de gás natural à CNPC, eis que a Autoridade Tributaria de Moçambique (AT), presidida por Rosário Fernandes, chama para si a prestação de uma atenção cirúrgica ao caso, como forma de, com isso, se evitar que o Estado moçambicano, que vive apelando à caridade pública internacional, fosse prejudicado no potencial de enorme encaixe financeiro. Nisso, a AT se apercebe que “afinal a ENI iria burlar o Estado em mais de um bilião de dólares norte-americanos (USD), com o silêncio cúmplice de Armando Guebuza”, que era PR;
“Guebuza decide ficar longe do barrulho e dá ordens à AT para actuar sobre a ENI, mas encarregou-se ele próprio de negociar. Por norma, quem devia negociar é o Estado, mais concretamente a AT (que só tinha de aplicar a fórmula de 32% sobre o valor total da operação), mas Guebuza tratou o assunto como se fosse privado e marcou o preço dos impostos directamente com os gestores da ENI”;
O valor total da operação era de 4.2 biliões USD, no qual o Estado, que era suposto encaixar 1.3 bilião de dólares (28%), só encaixou 400 milhões USD, com o “beneplácito” de Guebuza, que “pediu outra parte em espécie, ou seja, a construção de uma estação de energia de 75 megawatts”, apesar de o Código do Imposto de Rendimento de Pessoas Colectivas (CIRPC) desconhecer, em absoluto, o pagamento de tributação em espécie;
Nesse processo todo, em que o Estado, como colectividade, perdeu mais de 900 milões USD, Guebuza terá reunido, em privado, com os gestores da ENI, pelo menos duas vezes, tendo sido, a última reunião, se realizado a 3 de Dezembro de 2014, em Westin Excelsior, na Via Veneto, Itália, para onde se deslocara em suposta missão de “fortificação das relações de cooperação e amizade” com a Itália, e num momento em que Filipe Nyusi já fora, pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), declarado vencedor das eleições [presidenciais] de 15 de Outubro de 2014. A primeira foi a 14 de Agosto de 2013, no distrito de Changara, em Tete, onde ele se encontrava em ‘Presidência Aberta’;
Em escutas telefónicas a Paolo Scaroni, antigo administrador da ENI, realizadas na Itália, no quadro de uma “investigação sobre corrupção internacional levada a cabo pela Procuradoria de Milão”, terá sido achado o nome de Armando Guebuza, designadamente como tendo oferecido àquele [Paolo Scaroni] um terreno paradisíaco no Bilene, “com a possibilidade de um DUAT (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra) válido por 40 anos. Guebuza convida Scaroni a construir uma vivenda nesse terreno”;
Os ficheiros que estão na Procuradoria de Milão se reportam a telefonemas em que é citado o nome do antigo PR de Moçambique com a data de 3 de Março de 2013, com relevantes chamadas as 9 horas e 42 minutos, as 9 horas e 56 minutos e as 10 horas e 19 minutos, sendo que, em todas elas, Scaroni é citado a expressar a sua felicidade pelo valioso pedaço de que que lhe fora “oferecido por Guebuza”;
“O que deixa a imprensa italiana admirada é que a oferta do ‘pedaço do paraíso na terra’ ao patrão da ENI não tenha sido feita por uma agência imobiliária, mas por Armando Guebuza em pessoa, sendo ele nessa altura Presidente da República de Moçambique”;
O referido terreno acha-se localizado numa zona protegida por lei na República de Moçambique (acessível por mar e a partir da lagoa), nomeadamente por ser uma área de “ocorrência de tartarugas marinhas”.
Deveres do Ministério Público
O MP, sendo titular da acção penal e cabendo-lhe zelar pela observância da legalidade, bem como fiscalizar o cumprimento das leis e demais normas legais, tem o dever de investigar uma denúncia tão grave e séria como a reportada pelos três órgãos de informação atrás citados, termos em que remeter-se à inoperatividade, como se de nada tivesse tomado conhecimento, é, no mínimo, uma traição aos desígnos do Estado de Direito Democrático.
Em boa verdade, o dever de actuar como guardião da legalidade, por parte do MP, possui dignidade constitucional, uma vez dispor a norma contida no número 2 do artigo 234 da CRM que “No exercício das suas funções, os magistrados e agentes do Ministério Público estão sujeitos aos critérios de legalidade, objectividade, isenção e exclusiva sujeição às directivas e ordens previstas na lei”.
Antes mesmo de avançarmos com o que o MP deve, em concreto, fazer, vertendo, o sobredito artigo do ‘Canal de Moçambique’ – que, por imperativos legais, a PGR o recebe a título não oneroso (gratuito) – sobre tipos legais de crime por excelência públicos (os de corrupção e conexos), julgamos ser útil dissecar minimamente o significado prático do princípio da legalidade, nomeadamente em sede do processo penal.
Dizem-nos Ana Prata, Catarina Veiga e José Manuel Vilalonga (Dicionário Jurídico; 2009; Direito Penal e Direito Processual Penal; Volume II; Coimbra: Almedina) que, em sede do processo penal, o princípio da legalidade resume-se no facto de “a promoção e prossecução (...) consubstanciar um dever que impende sobre o Ministério Público: a sua actividade deve desenvolver-se sob o signo da estrita vinculação à lei e não segundo considerações de oportunidade de qualquer ordem (política, financeira ou social)” (pág. 389).
De resto, “o princípio da legalidade visa pôr a justiça penal a coberto de suspeitas e de tentações de parcialidade ou de arbítrio, preservando, assim, um dos fundamentos essenciais do Estado de Direito [Democrático], evitando o perigo de aparecimento de influências externas” (idem).
Além, naturalmente, da CRM e do Código de Processo Penal (CPP), dois instrumentos legais afiguram-se-nos capitais para que o MP cumpra com as suas obrigações legais quanto ao caso aqui vertido: a Lei número 14/2012, de 8 de Fevereiro, que introduz alterações à Lei número 22/2007, de 1 de Agosto (Lei Orgânica do Ministério Público e Estatuto dos Magistrados do Ministério Público); e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, ratificada por Moçambique através da Resolução número 31/2006, de 26 de Dezembro, da Assembleia da República (AR), no quadro do que aquele instrumento é, no nosso país, lei infraconstitucional (números 1 e 2 do artigo 18 da CRM).
Nos termos do artigo 40-H da Lei Orgânica do Ministério Público e Estatuto dos Magistrados do Ministério Público, nos termos em que foi aditado pelo artigo 2 da Lei número 14/2012, de 8 de Fevereiro, compete aos magistrados do MP em funções no Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC), para além do previsto na legislação em vigor e no âmbito da investigação e instrução preparatória de crimes de corrupção, peculato, participação económica ilícita, tráfico de influências, enriquecimento ilícito e conexos, “recolher informações relativamente a notícias de factos (sublinhado nosso) susceptíveis de fundamentar suspeitas de prática de crimes...” [alínea a) do número 1].
Aos magistrados e agentes do MP compete ainda “realizar e dirigir a instrução preparatória, podendo requisitar, nos termos legais, documentos, informações, extractos de contas e telefónicos, registos e outros dados da pessoa suspeita de haver cometido os crimes de corrupção, peculato, participação económica ilícita, tráfico de influências, enriquecimento ilícito e conexos” [alínea e) do número 1 do mesmo artigo (40-H)]. Uma empreitada de utilidade pública por Bilene e relevante operadora de telefonia móvel seria mais do que exigível e/ou expectável, para efeitos de descoberta da verdade. Analisar o dossier que deve estar nas gavetas da AT é, nisso, mais do que relevante.
Aliás, antes mesmo das competências dos procuradores e agentes do MP, investigadores inclusos, temos as do GCCC como tal, que se encontram elencadas no artigo 40-E da Lei Orgânica do Ministério Público e Estatuto dos Magistrados do Ministério Público. Quanto ao caso aqui em análise, é por demais relevante o disposto na alínea d) deste artigo [40-E]: “[No âmbito do seu objecto, compete ao Gabinete Central de Combate à Corrupção] propor as providências necessárias ao Procurador-Geral da República sobre o prosseguimento das investigações no estrangeiro e acordar as formas de actuação, em coordenação com as autoridades competentes dos respectivos Estados, no caso de crimes de corrupção e conexos”.
Extrai-se, do atrás registado, que ao GCCC, dirigido por Ana Maria Gêmo, a peça publicada pelo ‘Canal de Moçambique’ é bastante para que se inicie um exercício tão útil ao país, que poderá recuperar os fundos que ficou por encaixar das ‘Mais-Valias’, como ao cidadão Armando Guebuza, antigo PR, que terá, nesse exercício, uma soberba oportunidade de ‘materializar’ a ‘formal’ presunção de inocência que possui, tal como qualquer outro cidadão, a coberto da CRM (número 2 do artigo 59). Mas, sem que a Procuradora-Geral da República, Beatriz Muchili, que foi nomeada para o cargo por Armando Guebuza, em substituição de Augusto Paulino, o autorize, nada poderá ser processualmente esclarecido.
Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que, domesticamente, é lei infraconstitucional, mas vinculando internacionalmente o Estado moçambicano, a PGR, enquanto Autoridade Nacional [de Combate à Corrupção] na República de Moçambique (artigo 2 da Resolução número 31/2006, de 26 de Dezembro), pode solicitar, à Procuradoria de Milão, na Itália, cooperação em matéria penal (artigo 43), tendo, todos os Estados-Parte abrangidos (Moçambique e Itália, neste caso) a possibilidade de “considerar a concessão de assistência mútua na investigação e em procedimentos relativos a assuntos civis e administrativos relacionados com a corrupção”.
No quadro do que dispõe o artigo 47 do mesmo instrumento legal, Moçambique, através da PGR, pode, querendo, considerar a transferência, para cá ou para lá, “dos processos relativos a uma infracção estabelecida em conformidade com a presente Convenção [das Nações Unidas contra a Corrupção], nos casos em que essa transferência seja considerada necessária no interesse da boa administração da justiça e, em especial, quando estejam envolvidas várias jurisdições, a fim de centralizar a instauração dos processos”.
Guebuza: formalmente inocente, mas...
Na sua edição de 25 de Fevereiro de 2015, na qual as graves suspeições contra Armando Guebuza foram ecoadas, o ‘Canal de Moçambique’ ouviu Damião José, porta-voz da Frelimo, que precisou: “Não pode ser verdade. Não há nenhuma verdade sobre isso, porque, se assim fosse, deveriam apresentar evidências e dados concretos do que isso, que parece ser mais especulação”, tendo ajuntado que o que se visa é “difamar, pôr em causa o bom nome, a honra, a integridade e a imagem do presidente da Frelimo”. Entretanto, em nenhum momento o jornal, muito menos Damião José, explica se essas declarações foram feitas em nome do cidadão Armando Guebuza, sendo a responsabilidade criminal pessoal e intransmissível.
Conforme referimos extensivamente nas linhas anteriores, Armando Guebuza, enquanto cidadão, e nos termos da CRM, deve ser presumido inocente. Mas, em face das suspeições levantadas sobre si, por actos que, alegadamente, terá empreendido enquanto PR, o melhor que pode suceder é a abertura de uma investigação profunda, para que, sendo factualmente inocente, ele seja isento dessas desconfianças. Sucedendo o contrário, o Estado deverá responsabilizá-lo, nomeadamente através do Tribunal Supremo, que é onde, caso se abra uma investigação que depois se traduza em pronúncia, um antigo PR deve ser julgado (número 1 do artigo 153).



 
  SAVANA, 13 de Março de 2015, pág. 12.

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