Friday, 7 November 2014

A CERTEZA DA INCERTEZA

 
O fenómeno do poder que um indivíduo ou grupo de indivíduos exerce sobre terceiros esteve sempre no centro das atenções dos estudos políticos, desde o tempo da filosofia grega até os nossos dias.
Max Weber (1864-1920) definiu o poder como “a possibilidade [que um indivíduo ou grupo de indivíduos] tem de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistência, seja qual for o fundamento dessa possibilidade”. Para Robert Dahl (1915-2014), o poder é “a capacidade de A de obter que B faça algo que não teria feito sem a intervenção de A”.
Julgando a partir destas duas definições do conceito de poder, pode parecer que exista uma identidade entre um dirigente político e um sequestrador, ou entre um governo e uma quadrilha de larápios. De facto, tanto um como o outro têm a capacidade de obter que o indivíduo B, ou grupo de indivíduos, faça algo que não teria feito sem a sua intervenção.
Todavia, o próprio Weber nega a ideia segundo a qual a única base ou fundamento do poder seja o uso ou a ameaça do uso da força; e insiste sobre a existência de outros factores que determinam a prevalência da vontade de um determinado indivíduo ou grupo de indivíduos em detrimento de um outro.
Para evitar equívocos conceptuais entre quem exerce ilegitimamente um poder para tutelar os próprios interesses (em detrimento das pessoas a ele sujeitas), e quem o exerce legitimamente para tutelar o bem colectivo de uma comunidade política, a tradição filosófica introduziu o termo “autoridade”, considerado mais apropriado para designar a função de um governo ou dirigente político. Portanto, enquanto o termo “poder” representa uma “pura capacidade de facto” de comandar, o termo “autoridade” constitui uma “capacidade de direito” de comandar.
Quando ouvi o presidente da Comissão Nacional de Eleições (CNE), o sr Abdul Carimo, a anunciar os resultados definitivos das V Eleições Gerais de Moçambique, senti-me impelido a revisitar esta fundamental distinção entre a obediência ao comando de um governo ou de um dirigente político, a quem cabe o direito de exigir obediência da parte de todos os cidadãos, e uma quadrilha de salteadores que, com a força das armas ou outros meios, em certas circunstâncias, pode também exigir e obter a obediência indevida dos cidadãos.
É significativo, expressivo e emblemático o modo como foi celebrado o anúncio dos resultados definitivos, na tarde do dia 30 de Outubro. Tanto os partidos de oposição, como o partido no poder - a Frente de Libertação de Moçambique - vinham seguindo a publicação dos resultados parciais. Já que os anúncios preliminares preconizavam derrota para a oposição, esta não tinha nada a festejar e acho que deve ter sido por essa mesma razão que tanto a Resistência Nacional Moçambicana como o Movimento Democrático de Moçambique adiantaram-se (antes da proclamação definitiva) a declarar a não-aceitação dos resultados, alegando a gravidade das irregularidades que tinha caracterizado o processo da votação, contagem e processamento dos votos.
Curiosamente, o partido que foi declarado vencedor, embora tivesse toda a certeza que a CNE iria declará-lo vencedor, também não tinha preparado nenhuma festa para celebrar a ocasião. Pelo contrário, impôs uma recolha obrigatória antes do anúncio dos resultados, como se temesse que certos distraídos seriam tentados a festejar aquilo que era um luto nacional não decretado. A cidade capital, Maputo, e as capitais do Centro e Norte do País estavam desertas. Era como se cada um dos moçambicanos procurasse um arbusto para esconder-se dos acontecimentos vergonhosos do dia 15 de Outubro que, com a proclamação dos resultados definitivos, iriam ficar para sempre nos anais da História.
Os dirigentes seniores e os quadros mais sérios do partido “glorioso” que NÃO tinha convencido a ninguém (embora tivesse vencido as eleições) não queriam prestar declarações. Deixaram o espaço para os charlatões do partido para que exibissem os próprios delírios. De facto, não havia espaço para que os membros sérios do partido se pronunciassem porque aqueles números não continham a força moral necessária para atribuir autoridade e direito a Filipe Jacinto Nyusi e a Frelimo de estar em frente dos destinos do País nos próximos cinco anos. Os números não continham força moral, não porque a vitória não tinha sido “retumbante” mas porque não havia nenhuma evidencia que ela (a vitória) tenha existido.
Mesmo os que tinham fé naqueles números mecanicamente recitados pelo presidente da CNE, quando se recordavam de toda a gama de irregularidades que tinha caracterizado o inteiro processo e, consequentemente, determinado a obtenção daqueles números, acabavam provando o mesmo sabor amargo que todos os restantes provavam daquela forjada vitória. Para o cúmulo, 7 dos 17 vogais componentes a CNE não tinham assinado as actas dos resultados proclamados.
Os moçambicanos de todas as categorias sociais, e de todos os partidos políticos, não tinham nada a festejar. Pelo contrário, todos sofriam de um pesadelo como se todos tivessem sonhado estando diante de um televisor onde decorria um filme de terror (histórico? ou ficção!), no qual um grupo de larápios constituído por homens e mulheres altos, fortes, com barrigas e nádegas grandes, mascarrados com batuques e maçarocas vermelhos, assaltava e sequestrava as instituições e os funcionários públicos. Não havia nada a festejar. Tratava-se duma humilhação colectiva.
Logo a seguir, os moçambicanos sentiram a própria sensibilidade ferida quando a Missão da Observação Eleitoral da União Europeia (MOE UE), na pessoa da sua chefe, Judith Sargentini, classificou as V Eleições Gerais moçambicanas de ordeiras, transparentes, livres e calmas. Algumas pessoas chegaram a acusar as potências europeias de continuar a priorizar os seus interesses económicos, em detrimento da sorte das populações africanas e das suas instituições políticas.
Suspeito que os que se irritaram com a declaração da srª Sargentini tenham se esquecido que, enquanto segundo as teorias precedentes ao positivismo jurídico, o poder político devia ser sustentado por qualquer justificação ética e, portanto, a legitimidade precedia a efetivação, com o advento das teorias positivistas fez-se coincidir o poder efetivo com a legitimidade: o princípio da efetividade do direito internacional.
Segundo esta concepção, se um grupo de malfeitores conseguisse derrubar o governo legítimo de um determinado Estado, ocupasse as instituições públicas e fizesse com que se voltasse à “normalidade” – adquiriria, ipso facto, a legitimidade de governar o Estado em causa.
A srª Sargentini conhece muito bem este princípio de efetividade do direito internacional. A sua declaração mostra que ela tinha percebido que a Frente de Libertação de Moçambique tinha planeado toda a intentona, de modo a colocar os cidadãos moçambicanos, os observadores nacionais e internacionais, e os partidos de oposição, diante de factos consumados. A Sargentini percebeu que evocar as irregularidades serviria só para criar dissabores entre a instituição que ela representa – a União Europeia (UE) – e o partido-governo que, de todas as formas, já tinha, muito precedentemente, tomado a decisão de manter-se no poder pela força, e já tinha criado todas as condições necessárias para materializar a sua decisão e, por isso, nenhum “deus” neste mundo, iria fazê-lo desistir desse projecto.
O vencedor que Abdul Carimo proclamou, formalmente, foi Filipe Jacinto Nyusi. Mas o verdadeiro vencedor das V Eleições Gerais de Moçambique não foi Nyusi. Este deve ainda combater a sua batalha. Os verdadeiros vencedores são todos aqueles que desde a primeira hora mostraram o interesse, investiram e trabalharam para garantir que Nyusi fosse imposto no comando dos destinos do País, mesmo se isso comportasse violência contra o povo que ele devia governar, ou contra todas as normas de convivência pacífica.
Uma vez Nyusi proclamado oficialmente presidente da República, os “verdadeiros vencedores” das eleições de 15 de Outubro têm a certeza de poder colher os frutos nocivos da sua luta. Mas tale certeza abre espaço para uma incerteza sobre o futuro do País. De facto, tanto uma autoridade legitimamente instituída como um sequestrador ou quadrilha de sequestradores, para exercer um poder sobre um indivíduo ou grupo de indivíduos é necessário o consenso explícito ou tácito da parte daqueles sobre quem o poder é exercitado. E esta é a dura batalha que Nyusi deve combater: fazer-se aceitar presidente da República cuja opinião generalizada dos cidadãos é que ele lhes tenha sido imposto, graças ao poder de manipulação e força das armas.
Para conquistar-se o consenso que as urnas NÃO o atribuíram, Nyusi tem duas opções: ou fazer o uso do “chicote” para sufocar e esmagar qualquer tipo de dissidência e desobediência, ou - através de uma boa conduta e boa governação – sarar as feridas causadas a muitos cidadãos pelas circunstância da sua eleição à presidência.
A batalha de Nyusi é, portanto, de dois fogos cruzados: aqueles para quem a sua proclamação como o “vencedor” das V Eleições Gerais é uma garantia inabalável de continuidade na utilização do poder político ou administrativo para a lapidação do erário público e para a construção de influências, com certeza, o Presidente eleito deveria fazer uso de “chicote” e agudizar as tácticas da manipulação para legitimar-se e obter o consenso. Se, contrariamente, Filipe Nyusi preferirá legitimar a sua presidência através de uma boa conduta e justa governação ele, paradoxalmente, terá que declarar “guerra” implacável àqueles que arriscaram e sacrificaram tudo e todos para a sua eleição, inclusivo o presidente da CNE, o sr Abdul Carimo.

Alfredo Manhiça




Nota: O Professor Manhiça  é um academico moçambicano e reside em Roma

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