Wednesday, 9 January 2013

Carta aberta aos cidadãos moçambicanos, por Um médico jovem e atento

Caros compatriotas
Na manhã de domingo foi anunciada uma greve geral dos médicos moçambicanos. Esta posição é o culminar de anos de tentativa pacífica de solucionar a deplorável situação dos médicos na função pública e acho que têm o direito de saber como chegamos a esta situação extrema.
Quando um indivíduo iniciava a sua carreira como médico em 1975, tinha como salário líquido ± 15.000 mt que na altura equivaliam a ± 454 U$D, e dava para viver confortávelmente, a título de exemplo, com 9 salários dava para comprar um Honda Civic novo; hoje, 37 anos depois e nas vésperas da reforma, como especialista consultor no topo de carreira e personalidade reconhecida internacionalmente na área, recebe um salário base de 29.629 mt que adicionado aos subsídios dá um total líquido ± 42.000 mt, ou seja ±1400 U$D.
Um médico em pós-graduação com 7 anos de carreira tenho um salário base de 15.531mt (535 U$D) e líquido de ± 24000 mt (827 U$D), que não chega ao dia 5 do mês seguinte, tenho quase a certeza que auferiria mais lavando carros ou como empregado em algumas casas. E hoje para comprar um Honda Civic novo custa no mínimo 60 salários.
Um enfermeiro geral recebe um salário base de ± 5100 mt e um líquido de ± 7800 mt (268 U$D); um servente de hospital recebe um salário líquido de ±2700 mt (93 U$D). Podem verificar isto no endereço: http://www.meusalario.org/mocambique/main/salario/ sector-publico-mocambique/salario-do-sector-da-saude - e existem documentos oficiais que mostram o mesmo.
Na história desta Pátria amada, os médicos foram, desde sempre (incluindo o período da guerra civil e até recentemente), os únicos profissionais de nível superior a serem colocados nos distritos, diga-se de passagem sobretudo com fins políticos, pois somos frequentemente solicitados (em particular fora de Maputo) a participar em tarefas político-partidárias em detrimento do exercício da nossa profissão. Temos aceitado de bom grado, porque estamos conscientes de que nos formamos à custa do Povo e para o servir. No entanto não fizemos nenhum voto de pobreza e estamos muito ressentidos com o modo como o Governo nos tem tratado.
A políticas do Governo foi de sempre colocar médicos nos distritos e nunca foi rejeitada, mas sentimo-nos injustiçados quando quase sempre somos alojados (por vezes literalmente em lojas convertidas em casas) em habitações precárias, muitas vezes sem água e/ou electricidade, e a trabalhar sem horário e com poucos meios para satisfazer as necessidades dos doentes, e vemos um jovem como nós mas que escolheu a magistratura ser colocado só onde há água e electricidade, receber cerca de duas vezes mais, ter direito a casa e outras regalias que não imaginam e trabalhar em regime horário normal durante 9 meses por ano. Não invejamos a sua situação mas temos dificuldade em compreender e aceitar por achar que não merecemos, esta discriminação negativa por parte do Governo.
Sentimo-nos revoltados e impotentes por ver alguns dos nossos enfermeiros e serventes fazerem cobranças ilícitas para que um paciente possa passar a fila e ser atendido nos serviços de urgência em detrimento de doentes que chegaram primeiro e por vezes em estado mais grave, e que por cansaço cometerem omissões e erros na prescrição de medicamentos. Mas que moral temos nós como chefes das equipas de saúde de repreender os elementos da nossa equipa que têm uma família para sustentar e filhos para educar, que recebem um salário inferior ao de muitos empregados domésticos e infringem as normas do trabalho ao fazer turnos nos hospitais e nas clínicas e não conseguem nem física ou psíquicamente dar aos doentes o tratamento que não só necessitam como merecem?
Sendo a prática da medicina por lidarmos com a vida dos nossos compatriotas, uma profissão de elevada responsabilidade, e que exige o sacrifício do convívio da nossa família, sentimo-nos injustiçados por não podermos dar às nossas esposas e filhos o que os nossos colegas dos bancos das Universidades conseguem propiciar às suas famílias. Com os salários que o Governo nos paga como podemos viver nos mesmos bairros e os nossos filhos frequentarem as mesmas creches e escolas. Não sabemos o que responder quando os nossos filhos nos perguntam porque é que escolhemos ser médicos em vez de outras profissões ou mesmo comerciantes. Talvez a resposta seja que na escala de valores da nossa sociedade existem actividades mais importantes e por isso mais remuneradas que as de salvar vidas.
Quando alguns de nós, exercemos actividade privada para nos tentarmos equiparar aos nossos pares na sociedade, somos criticados por supostamente descurarmos os cuidados aos pacientes do Serviço Nacional de Saúde em detrimento dos pacientes privados e no entanto o próprio Vice–Ministro da Finanças afirma "nós não temos como pagar, mas voces até têm onde ir buscar mais dinheiro".
Gostaríamos que ficassem claros de que a grande maioria dos médicos exerce medicina privada não como opção mas por necessidade e tal só acontece em algumas capitais provincias, pois caso contrário abandonariam o Estado para se dedicarem exclusivamente à privada. Gostaria sobretudo que soubessem que dos cerca de 1200 médicos formados pela UEM, um em cada 4, alguns dos quais especialistas conceituados, na procura de melhores condições de vida, abandonou o SNS para ir trabalhar em ONG’s, trocaram a clínica pela saúde pública. Quem de vós se sente à vontade para criticá-los quando trocaram um salário de 24.000 mt por salários geralmente superiores a 60.000 mt e que podem ultrapassar os 200.000 mt ?
Sentimo-nos insultados, humilhados e revoltados quando o Governo diz que não ter dinheiro não só para nos pagar melhor, mas sobretudo para melhorar as nossas condições de trabalho que poderiam contribuir para salvar mais vidas, mas tem dinheiro dos impostos de todos nós, para pagar aos nossos colegas sul-africanos e outros, não só os tratamento como ainda os check ups de rotina, dos quadros superiores dos três poderes. Só podemos concluir que nos maltratam e nos desprezam porque não precisam de nós. É assim que o Senhor Presidente acha que vamos cultivar a auto-estima?
O Governo diz não ter o dinheiro que precisa para a Saúde. Não cumpre a percentagem orçamental proposta pela OMS. Concordamos, mas gostaríamos de saber como é que após 37 anos de Independência ainda não descobriram que os seguros de saúde podem ser uma fonte de financiamento alternativo, para não falar dos microimpostos aos megaprojectos. Viajam por tudo o que é sítio neste mundo e o que é que aprenderam? O nosso estado de exasperação é por que nos parecer que os problemas do Povo e os nossos e ao invés do que propalam, são a menor das suas preocupações.
Como funcionários públicos do Estado sabemos que na função pública muitos têm salários maus e estamos solidários com todos os profissionais. No entanto, está documentado que em certos sectores as coisas funcionam de maneira bem diferente, por exemplo, um servente do Banco Moçambique recebe entre 20000 a 30000mt, um motorista no mesmo banco recebe entre 20000 a 50000 mt, um ajudante de escrivão judiciário tem um salário base de 17584 mt, um secretário judicial tem um salário base de 31970 mt, um juiz em topo de carreira tem um salário base de 37366 mt, um comissário geral tributário/aduaneiro tem 47453 mt, muitos deles têm emolumentos de 100% e regalias como casa e viatura de serviço, combustível, despesas caseiras e outras , mas a bom da verdade têm um compromisso de exclusividade. E os deputados?
À excepção dos deputados, não quero dizer que está errado pagar-lhes mais, gostaria era de saber porque razão o médico que dedica todo o seu tempo e mais algum ao trabalho tem um reconhecimento em termos salariais menor que um auxiliar de escrivão e não é equiparado a outros licenciados que auferem bem mais.
Há na função pública pesos e medidas claramente diferentes.
Ao longo da nossa história no pós independência, em nenhum momento foi feita a revisão dos salários dos médicos como aconteceu para outras classes, inúmeros dirigentes prometeram mundos e fundos, mas nunca cumpriram, e eles têm a sua assistência médica garantida no sector privado ou fora do país à custa dos nossos impostos.
Em 2011 o actual Ministro da Saúde prometeu aos médicos em especialização um subsídio que os pudesse ajudar a enfrentar as dificuldades que enfrentam pois é difícil ter que se dedicar o tempo todo à aprendizagem e pagar as contas apenas com o magro salário e até ao momento nada foi feito.
Em Novembro de 2011 foram apresentadas as preocupações do sector saúde ao Presidente Guebuza, e as reivindicações actuais foram referidas, e foi prometido que se iria resolver o assunto e até ao momento nada foi feito.
A actual direcção da Associação Médica de Moçambique (AMM) foi eleita e tomou posse em Maio de 2012 e nesta cerimónia o actual Ministro da Saúde manifestou a sua satisfação e apelou à e comprometeu-se na colaboração entre as duas instituições. Mas desde o início das actividades só foram encontradas dificuldades, até em aspectos que iriam benificiar o médico, por exemplo, bloquearam e impediram a execução de um acordo que permitiria a criação de uma página web que se pretendia que fosse também uma fonte de informação científica para os associados.
Estão documentadas as inúmeras solicitações de esclarecimento sobre a situação do estatuto e revisão salarial que sabíamos estar em curso e nunca houve resposta.
Perante este silêncio é convocada em Novembro de 2012 uma assembleia geral que deliberou a prossecução de tentativas esclarecimento da situação por cartas enviadas ao MISAU, GABINETE DO PRIMEIRO MINISTRO, PRESIDÊNCIA DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA todos estes com conhecimento do Secretário Geral do Partido FRELIMO e a resposta foi o silêncio. A AMM parte então para o pré aviso de greve que disperta a atenção do Governo e de imediato se realiza um encontro entre Primeiro Ministro e o MISAU, AMM e Ordem dos Médicos e deste saiu uma deliberação para se encontrar uma solução.
Na sequência o MISAU e AMM iniciam negociações para rever o estatuto e o salário em comissões específicas da qual participam apenas médicos funcionários públicos.
Foi então que o MISAU apresenta uma proposta salarial inicial em que haveria uma subida do salário base do recém formado para 20.000mt para o recém formado e 38.000mt para o especialista consultor, feitas as contas a subida real do salário líquido seria dos ±24000 mt actuais para ±28000mt para o recém formado e dos ±42000 mt para ±48000mt. Esta nunca fora discutida com os representantes da classe e já tinha cabimentação orçamental em Junho de 2012, em documento assinado pelo Ministro das Finanças:
Esta proposta é apresentada em reunião geral de médicos hoje histórica pela afluência. Nunca em momento algum da história da AMM uma reunião juntou tantos médicos, e o anfiteatro da Faculdade de Medicina foi pequeno para perto de 400 que ocuparam o espaço todo da sala e de fora ficaram vários, além dos que pela internet acompanharam este encontro, estima-se que certa de 1/4 dos médicos moçambicanos na função pública tenham estado no presentes. Esta assembleia chumbou a proposta do governo pois ficou claro ela não dignificava o médico e seguindo o princípio de se lutar por um salário base digno suplementado por subsídios que podem ser retirados a qualquer momento e delegou-se a direcção da AMM para avançar para a negociação com uma proposta de um mínimo de 40000mt de salário de base tendo em vista o que se paga a outras classes de profissionais na função pública, pois o médico não é mais nem menos válido que os outro profissionais que auferem esses salários.
Nas negociações foram acordados a composição das comissões e prazos (com documento assinado pelas partes) para o término das negociações com soluções aprovadas, 5 de Janeiro para a comissão de revisão salarial e 31 de janeiro para a comissão de revisão do estatuto.
A comissão de revisão do estatuto fez o seu trabalho sem grandes precalços.
Contrariamente ao acordado, deveriam integrar a comissão de revisão salarial membros do Ministério das Finanças e da Função Pública mas nunca foi explicada a sua ausência, esta negociação foi conduzida a passos de camaleão com ausência injustificada pelo MISAU a 24 de Dezembro, não sendo permitida a participação da AMM nos encontros nas finanças, para só no dia 3 de Janeiro apresentarem à AMM uma proposta salarial no mínimo indecente pois era menor que a inicialmente chumbada, com um salário base inicial de 18000mt que foi obviamente chumbada e ficou o MISAU de apresentar uma nova proposta no dia seguinte.
A alegação apresentada foi que o orçamento do Estado já tinha sido aprovado, que não havia muito espaço para manobra pois não havia mais dinheiro, além de que uma revisão no salário base do médico implicaria uma revisão de toda a estrutura salarial dos funcionários. ESTAMOS A FALAR DE 1274 MÉDICOS. Ora não há dinheiro para rever os salários mas há dinheiro para viaturas de luxo, helicópteros, passagens em primeira classe, pontes para lado nenhum, durante as conversas na mesa de negociação houve quem lamentasse que por causa da falta de dinheiro não tinha sido possível aos directores adquirirem viaturas novas em 2012, e pergunto o que foi feito às anteriores? E às anteriores a essas? Passaram-nas aos familiares? Alega-se que não há dinheiro mas o Governo gasta com cada médico cubano que está no país $6000 por mês. Alega-se que não há dinheiro mas foi publicado no Jornal Notícias recentemente que a Assembleia da República vai rever em Março o seu Estatuto e Regimento, será que verificaram que estão com despesas muito altas (880 milhões de meticais por ano) e vão reduzí-las?
A reunião de dia 4 de Janeiro não aconteceu e a AMM viu-se obrigada a anunciar as directrizes para a greve, e é quando médicos séniores conselheiros da AMM são chamados a um encontro com o MISAU e altos dirigentes do Ministério das Finanças que expôem a situação actual de insatisfação da classe e descrédito em que cairam pelas falhas sucessivas ao longo dos anos e recente e ao apresentarem aquela contraproposta salarial. Neste encontro foram dadas instruções para se encontrar uma nova proposta.
Sabe-se que ela existe mas não foi apresentada no prazo acordado, e provávelmente, se fosse uma proposta aceitável - um meio termo com garantias de se continuar a melhorar até se atingir o desejado, a AMM - aberta à negociação como claramente mostrou estar, cancelaria esta paralisação. O Governo volta a pautar-se pelo silêncio, o mesmo silêncio que levou à Assembleia geral de Novembro e o mesmo silêncio que levou ao pré aviso de greve. Mas este silêncio foi apenas na mesa de negociações e pois o Ministro da Saúde vem a público atacar alguns membros da AMM, refere-se a valores propostos não verdadeiros e a valores também não verdadeiros que paga aos poucos especialistas nas províncias mas não diz que não paga isso aos de Maputo, coloca-se contra os médicos e tenta colocar a opinião pública contra os médicos. Há exemplos recentes do caminho a que tal comportamento levou, ou não? E sobre o tal subsídio extra que é pago aos médicos especialistas, que a anterior Direcção do MISAU havia retirado, os tais $500 para renda de casa são na verdade 13000mt e as rendas de casa são de 20000mt em muitas capitais provinciais, além do factode tais subsídios de “topping up” não contarem para a reforma.
Depois sai a público um comunicado de imprensa ameaçando os médicos e é publicitado que a greve dos médicos é ilegal. Vários juristas consultados são de opinião contrária pois o facto de a greve não estar regulamentada no Estatuto Geral do Funcionário e Agentes do Estado não a torna ilegal pois existe outros instrumentos legais que a tornam legal, nomeadamente a Constituição da República, a Lei do Trabalho e o Estatuto da Ordem dos Médicos e seu Código Deontológico. Meus compatriotas a greve é legal, vai ser realizada sim e durante a sua duração vão ser garantidos os serviços médicos mínimos.
Gostaria de convidar os compatriotas que alegam a ilegalidade deste movimento para publicarem os seus salários, regalias e os subídios não publicados em Boletim da República. A todos peço que compreendam a nossa situação e que queremos apenas ser tratados como outros profissionais da função pública.
Para finalizar quero lembrar que Moçambique é hoje um país independente porque um grupo de jovens apercebeu-se de uma série de injustiças e juntou-se e formou a FRENTE DE LIBERTAÇÃO DE MOÇAMBIQUE.


A Verdade

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