Thursday, 1 November 2012

Os ardinas da “Joaquim Lapa”

Vejo-os religiosamente todos os dias às primeiras horas, à excepção dos sábados e domingos. Como que de um impulso, sempre que chego ao aconchego do trabalho assomo a janela e vejo-os, como se os estivesse a espiar.
Os mesmos de sempre, sentados ou “empeados”. Emprestam uma estranha contradição semântica: são barulhentos e zaragateiros, mas, sobretudo, simpáticos e, mais do que isso, são tipos suficientemente letrados. Do alto da simplicidade das suas vestes e falas que denunciam algum desacato para com o verbo e a língua de Camões nada leva a crer que saibam mais do que vender jornais. Mas sabem mais do que pensamos. É só vê-los folheando e degustando gulosamente os jornais enquanto esperam por clientes. Vejo-os, mas sobretudo ouço-os, comentando as mais importantes notícias. Falam dos Mambas e da vergonha de Marraquexe, da remodelação governamental, das quezílias do Parlamento, do Desportivo de Maputo, do preço dos transportes, das mortes encomendadas, do jogo Real Madrid-Barcelona e discutem, com convicções diferentes, se Ronaldo ou Messi, qual deles tem o estatuto de rei do futebol. Enfim, é uma malta que vive o dia-a-dia procurando sobreviver às agruras da vida e, por isso, buscando honestamente o pão de cada dia. Percebo, do canto da janela de onde os espreito, que desfrutam de ambiente amigo, pois há muitos anos que andam nesta empreitada, o que os torna cúmplices entre si. É interessante perceber que alguns se assumem como verdadeiros patrões, uma vez o tempo os ter conferido o estatuto de mais experimentados na actividade. Estes vão à esquina dos ardinas apenas para monitorar a distribuição dos jornais pelos “putos” que se encarregarão de “bater a cidade” para a revenda. No fim do dia os “putos” deverão prestar contas ao “boss”, que estará em algum canto triturando as amarguras da vida com outros afazeres.
Sempre que chega o carro carregado de jornais os tipos exultam freneticamente de alegria, como que “dopados” pela ânsia de tê-los à mão. Emitem estrondosos assobios e ululam palavras guerreiras acercando-se do veículo. Formam um estranho exército de guerreiros do ébano. Em sacos bojudos e com os jornais empilhados ao ombro, saltam acrobaticamente do veículo para fazerem as primeiras e rápidas conferências, primeiro da sequência do jornal, e, depois, dos principais títulos, de onde depois partirão para “ziguezaguear” a cidade. 
Dali da Rua Joaquim Lapa (agora Rua Joe Slovo ) partem extasiados pelo cheiro acre do jornal e vão pela cidade fora apregoando as manchetes do dia, envergando blusões de ganga e sempre de “olho vivo” e esperto. Conhecem todos os cantos da cidade, são trabalhadores incansáveis, vendem jornais todos os dias, sem folga e, muito menos, férias.
Não há rua ou beco onde não cheguem os ardinas com as notícias frescas. Têm uma vida difícil. A grande maioria vive na periferia, mas às primeiras horas é vê-los já de prontidão combativa. Os ardinas da “Joaquim Lapa” são zaragateiros e brigões mas também simpáticos e ganham a vida honestamente. Da janela os espio todos os dias e já me habituei a eles.
Fazem parte da minha paisagem psicoterapêutica.
Shalom.

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