Sunday, 29 July 2012

A quem interessa a ponte da Ka Tembe?

“É terrível ter governantes com uma visão reduzida à cidade de Maputo, esquecendo-se que Maputo representa, em termos dimensionais e populacionais, uma porção quase insignificante deste país. É verdade que esta cidade tem um contributo significativo nas estatísticas, sobretudo, quando se calcula o índice de redistribuição da renda. Por exemplo, só a renda do nosso Chefe do Estado, Armando Guebuza, é capaz de, nas estatísticas, colocar milhares de moçambicanos acima da linha da pobreza, quando, na realidade, estão abaixo dessa linha”.
O Governo acaba de anunciar, com pompa e circunstância, a contracção de dívida para a construção da ponte para Ka Tembe sobre a baía de Maputo. Trata-se de um empréstimo de 689.4 milhões de dólares, entre créditos concessionais (10%) e créditos comerciais (85%), e mais 5% a serem desembolsados pelo Governo moçambicano. Ao todo, a ponte vai custar-nos 725 milhões de dólares. Não há dúvidas que seja uma grande conquista, não para a maioria, mas para a elite moçambicana. Primeiro, a ideia de construir uma ponte para Ka Tembe não é de todo má, mas não é prioritária para um país que ainda não consegue oferecer serviços primários de qualidade aos seus cidadãos. Certamente, não é o interesse público que move o Governo a mergulhar o Estado em avultadas dívidas para erguer uma infra-estrutura daquelas, porém, sim, um interesse privado de uma elite predadora. É que parte desse dinheiro irá reforçar o poder financeiro da mesma elite por meio de corrupção e pagamento de comissões. Com esse poder, irá reforçar o controlo mediático e da sociedade civil. Segundo, as suas empresas, por meio de clientelismo, serão contratadas para prestação de serviços durante o processo da construção da ponte. Mas isto, não seria problema se o processo fosse transparente. Terceiro, se calhar o mais grave, é que este projecto é simplesmente elitista e desnecessário por beneficiar a minoria em detrimento da maioria sofredora.
Moçambique não é Maputo, não são os 250 deputados nem os expatriados chineses que sonham com uma cidadela parlamentar e uma China Town, na Ka Tembe, muito menos um governo de 20 e poucos ambiciosos. Olhando para aquilo que é Moçambique, há mais prioridades que uma ponte sobre a baía de Maputo, sobretudo num país em que os distritos e os postos administrativos ainda não estão ligados por estradas e pontes; em que numa localidade se morre de fome, enquanto numa outra contígua, a comida apodrece por falta de vias de acesso para o escoamento de produtos para o mercado; num país em que milhares de crianças, quando chove e, neste período de frio, não estudam porque não há salas de aulas, senão debaixo de árvores; em que milhares de mulheres morrem durante o parto juntamente com os seus bebés por falta de unidades sanitárias para a assistência. Aliás, num país em que as mulheres grávidas são obrigadas a percorrer dezenas de quilómetros à procura de uma unidade sanitária para o controlo pré-natal; em que milhares de moçambicanos morrem por falta de assistência sanitária; em que os doentes de Sida abandonam tratamentos anti-retrovirais, porque as unidades sanitárias se localizam a 50 ou mais km da sua residência. Ademais, não há condições para transitabilidade de viaturas, e se transitam, fazem-na uma vez por dia.
Há um mês, a Stv reportou um caso arrepiante no distrito de Mopeia, na província da Zambézia. Trata-se de caso de uma senhora que era transportada de bicicleta por cinco pessoas, três homens que asseguravam a bicicleta e duas mulheres que a acompanhavam para o centro de saúde que dista 40 km. Na entrevista, ocorrida às 12h00, disseram que haviam saído de casa por voltas da meia noite. Portanto, estavam, havia 12 horas, a empurrar uma bicicleta sobre a qual estava uma mulher grávida a rebolar e a soltar gemido. Eram 12 horas sem descanso e de sofrimento.
Aquelas situações são, de acordo com os entrevistados, normais para mulheres grávidas sempre que chegam ao nono mês de gestação. É que maternidade fica longe das suas residências e não tem, por perto, a “Casa Mãe Espera”.
Aquela senhora tinha 40 km de sofrimento. Sofrimento por dores de parto e sofrimento por dores provocadas pelos ferros de uma bicicleta que a transportava. Foi triste, mas muito triste vê-la rebolar numa bicicleta, assegurada por três pessoas. Na verdade, o sofrimento dela era mais sentido pelos acompanhantes do que propriamente por ela.
Esperava que algum governante, sobretudo o Presidente da República, tivesse visto o sofrimento daquela senhora e sua família. A mesma senhora a quem um dia conquistou para votar nele em troca de promessas de resolução dos problemas que ela, até hoje, ainda não os viu resolvidos. É a mesma senhora com quem os governantes dançaram à procura de voto para se acomodarem no poder, mas de quem, hoje, se esquecem e, ao invés de construírem uma via de acesso e uma unidade sanitária para aliviar o seu sofrimento e o sofrimento dos seus familiares, tal como lhe prometeram, querem construir uma ponte para acomodar seus apetites empresariais e turísticos.
O ministro da Planificação e Desenvolvimento, Aiuba Cuereneia, foi claro ao dizer que o projecto é mais do interesse turístico do que social: “Geralmente, quando falamos deste projecto, falamos só da ponte, mas temos a própria ponte Maputo-Ka Tembe, para além da estrada Ka Tembe-Ponta de Ouro e a estrada Boane-Matutuíne. Estas áreas apresentam um grande potencial económico e turístico, em particular. Neste momento, a parte da África do Sul já se encontra em boas condições de transitabilidade e cá não há boas condições na estrada, o que significa que o turismo interno está prejudicado. Estamos a dizer, por outro lado, que, com a ponte para Ka Tembe, vamos desenvolver o outro lado da baía de Maputo, o que quer dizer que a cidade de Maputo terá um espaço para a sua expansão, e isto são ganhos económicos que o país vai ter”. Ora, a questão é: quem é o moçambicano que faz turismo? Certamente que não é aquele que os votou; aquele que ainda não conseguiu resolver problemas básicos de auto-suficiência alimentar. São, certamente, eles que já estão mais preocupados por caprichos. Aqueles que, quando acordam, o seu problema não é não ter o que comer, mas a dificuldade de escolher o que comer.
O jornal “O País” da última segunda-feira fez uma reportagem em que mostrava, caso decidíssemos investir em áreas prioritárias, o que era possível com esse dinheiro:
  • Construir, pelo menos, 6 300 centros de saúde com maternidades, em todo o país, o que implicaria ter em cada posto administrativo 14 unidades sanitárias do género. Neste momento, estima-se que 50% da população viva a mais de 20 km da unidade sanitária mais próxima.
  • Desenvolver uma exploração de carvão da dimensão das que se encontram neste momento a ser desenvolvidas pelas companhias multinacionais, no distrito de Moatize, província de Tete.
  • Construir, pelo menos, sete pontes Armando Emílio Guebuza, uma infra-estrutura que liga o Sul, Centro e Norte do país.
Tenho impressão de que é mais importante, se calhar até viável, uma ponte que liga Maxixe/Inhambane do que Maputo/Ka Tembe. Maputo/Ka Tembe atravessa-se de dois batelões que, não só transportam pessoas, como também viaturas. Ka Tembe e Ponta de Ouro têm a entrada via Boane que deve ser menos distante que o desvio Maxixe/Inhambane. O que nós precisamos, na Ka Tembe, não é uma ponte sobre a baía de Maputo, é, pois, a reabilitação de estradas e ampliação de ponte-cais, a circulação 24 horas por dia de batelões.
É terrível ter governantes com uma visão reduzida à cidade de Maputo, esquecendo-se que Maputo representa, em termos dimensionais e populacionais, uma porção quase insignificante deste país. É verdade que esta cidade tem um contributo significativo nas estatísticas, sobretudo, quando se calcula o índice de redistribuição da renda (renda per capita). Por exemplo, só a renda do nosso Chefe do Estado, Armando Guebuza, é capaz de, nas estatísticas, colocar milhares de moçambicanos acima da linha da pobreza, quando, na realidade, estão abaixo dessa linha. Isto é, se juntarem a renda de 10 mil ou mais pobres moçambicanos (vivem com pelo menos 1 dólar por dia) a do Chefe do Estado (milhares de dólares/dia), as estatísticas podem revelar que todos os 10 mil são cidadãos da classe média. É esta a importância da cidade de Maputo nas estatísticas: retira-nos da pobreza, sem termos evoluído, o que faz com que Moçambique seja dado como exemplo do combate à pobreza. O erro das estatísticas é de não se aperceber que, em Moçambique, mais do que os rendimentos dos pobres que sobem, é riqueza dos mais ricos que aumenta, o que se acaba reflectindo na conclusão de que a pobreza está a diminuir ou estacionária, quando está a aumentar.
Aquela senhora só agora deve ter-se apercebido de que este Governo de Guebuza e companhia não se compadece nem se preocupa com o sofrimento dos pobres, mas com os ricos. É impiedoso. É insensível. É elitista. É individualista. E é de uma visão localista. Só agora é que se deve ter apercebido de que o Presidente da República não sente as dores que ela sente por falta de vias de acesso e de unidades sanitárias; só agora é que se deve ter apercebido que o Chefe do Estado só chega à sua localidade de helicópteros, não passando por nenhumas das covas que ela teve de enfrentar pendurada numa bicicleta; só agora é que se deve ter apercebido que o Chefe do Estado sobrevoa sempre com uma pequena unidade sanitária móvel no seu avião, daí não sentir as dificuldades pelas quais ela passou durante 40 km sobre uma bicicleta. Deve saber que os deputados que ela escolheu anuíram a ideia, porque o projecto vai viabilizar a Cidadela Parlamentar, não a construção de uma unidade sanitária, no valor de 120 mil dólares para aliviar o seu sofrimento e o sofrimento dos seus familiares.
Tenho saudades do “Deixar Andar”, porque, pelo menos, andávamos todos.

Lázaro Mabunda, O País

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