Tuesday, 21 December 2010

Uma leitura desapaixonada dos Wikileaks

Os documentos confidenciais da Embaixada dos Estados Unidos em Maputo, divulgados a semana passada sobre Moçambique, oferecem uma leitura interessante, mas ao mesmo tempo intrigante sobre a situação neste país.
Trata-se de memorandos diplomáticos de rotina, enviados pelo então Encarregado de Negócios Todd Chapman, que na ausência prolongada de um embaixador, assumia as funções de chefe de missão. Chapman é um espião de carreira, e o facto de o governo dos Estados Unidos o ter mantido por tão prolongado período à frente da sua missão diplomática mostra o nível da classificação atribuída por Washington nas suas relações com Moçambique. Significa, em termos práticos, que para os Estados Unidos, Moçambique passava a assumir a classificação de um assunto de segurança, extravasando o simbolismo do excelente relacionamento político entre estados, que representa a troca de embaixadores. Esta mensagem subtil talvez não tenha sido devidamente captada em Maputo, mas os desenvolvimentos dos últimos seis meses são muito reveladores do que se passava e se pensava em Foggy Bottom sobre Moçambique.
Terminada a sua missão em Moçambique, Chapman seguiu este ano para o Afeganistão, o seu actual posto. A nomeação, confirmação e posterior acreditação da Embaixadora Leisly Rowe poderá ter marcado o início de uma nova etapa nas relações entre os dois países, uma em que as duas partes deverão realizar um intenso trabalho político para melhorar e aprofundar as suas relações, condição essencial para uma maior e crescente ajuda americana (e de outros quadrantes) para Moçambique.
Uma boa parte das notas enviadas por Chapman aos seus superiores hierárquicos em Washington consiste em conversas informais com uma variedade de fontes em diversas circunstâncias, incluindo recepções diplomáticas e no trabalho próprio de recolha de informação que faz parte da rotina de um diplomata. Algumas informações terão sido cruzadas com outros funcionários da embaixada e de outras missões diplomáticas com quem geralmente os Estados Unidos partilham informações nos países de acolhimento.
É assim que alguma informação constitui uma aberração, e deve imediatamente ser rejeitada. Mas esses são os riscos que enfrenta qualquer indivíduo que vive da recolha de informação, incluindo jornalistas. A maior percentagem da informação que recolhemos todos os dias é para deitar fora, mas tal não deve ser motivo para nos desviarmos da essência do que a recolha de tal material pretende alcançar. Assim, não será difícil pôr no descrédito muita informação transmitida por Chapman para o governo dos Estados Unidos sobre Moçambique.
As mensagens estão recheadas de nuances, mas nunca chegam a acusar quer o actual quer o anterior Presidente da República de envolvimento no narcotráfico, como certas correntes têm tentado fazer crer. O que as mensagens sugerem é que os indivíduos supostamente envolvidos nestes actos são tão próximos do centro do poder político em Moçambique de tal forma que o podem comprometer.
Falam também do partido Frelimo que tem supostamente beneficiado dos proventos destas transacções para as suas actividades políticas, incluindo campanhas eleitorais dos seus candidatos. Pode-se entender isto como uma acusação de que o partido Frelimo esteja envolvido no narcotráfico. Mas beneficiar inadvertidamente de uma ilicitude não é um risco totalmente evitável, muito em especial quando se está numa posição em que receber favores deixa uma certa expectativa de retribuição em quem os dá.
É por isso que com todas as suas imperfeições e erros de facto, os conteúdos das mensagens de Todd Chapman merecem ser analisados com alguma seriedade no que diz respeito à essência do que elas pretendem transmitir; que é o perigo de Moçambique se tornar num país de economia narcótica, onde a posição da nossa moeda nacional face às outras moedas de referência internacional depende significativamente das flutuações no fluxo de cash proveniente do negócio de substâncias proibidas, pondo em causa a sanidade da nossa própria economia.
Desde há algum tempo que se tornou generalizada a percepção de Moçambique ter-se tornado num entreposto do narcotráfico, sendo o assunto objecto de conversas de café e de bar.
É objecto de reparo o enriquecimento meteórico e a ostentação de riqueza por parte de funcionários públicos cujos rendimentos dificilmente podem justificar as suas extraordinárias posses.
A produção agregada de todos os sectores de actividade económica, adicionada aos recursos provenientes do exterior, está muito abaixo do que o moçambicano é todos os dias dado a ver.
Muitos incidentes envolvendo a apreensão de drogas nunca tiveram um desfecho que permitisse ao público concluir que a acção oficial é de implacabilidade perante o narcotráfico; desde a apreensão, há uns anos, de 40 toneladas de haxixe, às múltiplas detenções de traficantes de drogas que nunca tiveram destinatário ou que tenham ido parar à barra do Tribunal.
Os detractores de Chapman não encontram auxílio nas suas posições quando na mesma altura em que os seus escritos são divulgados é preso na Swazilândia um indivíduo (descrito nesses relatos) na posse de 18 milhões de randes (o equivalente a 2.6 milhões de dólares) em dinheiro vivo proveniente de Moçambique. Como é que tamanha quantidade de dinheiro saiu de Moçambique sem que as autoridades alfandegárias o detectassem?!
Na tentativa de encontrar resposta a esta e outras perguntas, talvez seja aconselhável uma leitura desapaixonada sobre os escritos de Todd Chapman.

Editorial do Savana, citado no Diário de um sociólogo - 15.12.2010

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